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Gregário, o Mateiro – 05

Gregário

Antônio Cantanhede

Nesse texto, podemos navegar na narrativa de Antônio Cantanhede, através de um conto denominado “Gregário, o Mateiro”, em que os fatos acontecidos tem o cenário nas terras coarienses.

Gregário

A quem viaja o caudaloso Solimões em paquetes[1], passam desapercebidos dezenas de interessantes furos e de minúsculos paranás, que dão acesso a imensos e formosos lagos, cuja grandeza e monotonia nos convida à considerações várias sobre essa obra portentosa da natureza, que é a planície amazônica e a sua rede hidrográfica.

De Mamiá acima, lago de águas escuras, mais parecendo infindo tapete de veludo negro, orlado do verde escuro dos seus grandes castanhais; ora manso como em quietude dormente, velado por suas margens distantes de mais de dois mil metros; ora desperto, mesmo ao leve soprar da brisa, espreguiçando-se em moles ondulações ou encrespado, qual oceano bravio no furor do temporal desfeito, espumando é movendo-se como um rebanho de ovelhas sujas, em longa disparada, eis-nos a transpô-lo em uma pequena montaria, com dois remadores à proa.

Eles, dizendo-se pilhérias insulsas ou relembrando façanhas amorosas, citando passagens de farras ou de episódios estravagantes da obscura, doentia e ignorada existência na planície maravilhosa. E nós, coração à larga, sentindo crescer a ansiedade pelo fim em mira, pensando já no próximo regresso antes mesmo de atingir a meta, mantemo-nos calado, a ouvir, a cismar.

Penetrando os chavascais da “mãe do rio”, já com dois longos dias de viagem, lago a dentro, ora ao largo ora beirando a mata, próximo ao barranco vermelho, só, entre duas criaturas cuja loquacidade contrasta com o nosso mutismo, o estômago a reclamar alimento, o pensamento voa, levado pela necessidade de expandir-se, na impossibilidade de permuta, no momento, das impressões colhidas durante a tediosa viagem, longe de Coari, cidade que deixaremos.

Imerso em cismar constante, ouvindo a cada pergunta um monossílabo como resposta acode-nos à lembrança algum dos muitos episódios, cuja narração ouviremos em momentos passados. Nesse estado de espírito, procuramos reconstituir, de memória, uma cena bárbara ocorrida no município de Tefé.

Gregário

Repare, dissera-nos um amigo de ocasião, apontando para uma rapariguinha magra, ossuda mesmo, tipo de pré-tuberculosa, recostada a uma grande mesa, na sala principal da tasca do Gabriel, na cidade de Coari, onde entráramos por uma xícara de café, certa noite. Ela, cercada por uns poucos de indivíduos de várias idades e de costumes diferentes, a quem Deolinda, pois que assim se chamava a rapariga apontada, alegremente prestava atenção, prodigalizando ora amoráveis olhadelas, ora desaforadas respostas aos galanteios que ia recebendo, como num torneio em que se sentisse vaidosa e mesmo feliz por medir suas fracas forças com tão temíveis assaltantes, já quase todos derrotados.

Essa pequena que está vendo, essa serpentezinha, continua o nosso amigo, acaba de chegar de Tefé e é enteada do Gregário, o comedor de fígado. Nunca ouviu falar no Gregário? interroga-nos.

— Absolutamente, respondemos, e creio mesmo ainda não haver topado, por estas paragens, com alguém que acuda por tal nome.

— Pois vou pintar-lhe o tipo do padrasto de Deolinda, e depois narrar lhe uma de suas inúmeras façanhas. É Gregário um desses espécimes perfeitamente retratáveis apesar de manifestamente incompreensíveis: alto, magro, espadaúdo, carapinha de cor duvidosa, porque não tendo castanhos os cabelos não os tem também louros ou pretos; bigodes fulvos, apenas perceptíveis; testa achatada, zigomas salientes, queixo largo; mãos grossas e desprovidas de pelos, dedos curtos, nodosos; fala mansa, sorriso inexpressivo, olhar incerto, desferido por uns olhinhos nem azuis nem castanhos, puxando a pardos. É um tipo que parece ter em cada ocasião um aspecto diferente. Manhoso e desconfiado, é feroz até ao limite do possível.

Quando surgiu por estas paragens, dissera andar à procura de trabalho de mateiro, pois, dotado de grande tino, podia entrar na mata bruta e aí passar dias e dias, saindo depois no ponto antes por ele indicado. Não carrega bagagem nem alimento: o terçado, a espingarda de caça, alguma munição, tabaco e nada mais. É o tipo do selvagem.

Pois bem, prossegue o amigo, essa criatura, no seu eterno nomadismo, foi parar às proximidades de um tabuleiro, no Rio Solimões, na época da viração. Soube ele então que ali se encontrava como comandante da praia, um indivíduo conhecido por seu Zeca, homem trabalhador e pacato que, em companhia da esposa, já anos a fio vinha exercendo aquele encargo por ocasião da desova das tartarugas, concedendo a todos que ali aparecessem, a parte que lhes assistisse ou lhes fosse devida, no produto da tarefa, como é de uso nos tabuleiros.

Apesar de ali ter sido bem acolhido, declarou Gregário, de início, não se conformar com o modo de agir, do fiscal, e dissera a algumas pessoas que encontrara e com quem trocara ideias que, na defesa “dos seus direitos”, iria até ao inferno, quer o diabo quisesse quer não. Richoso, não perdoava ao fiscal ali exercer autoridade, e depois era um abuso, ter ali a mulher, quando ele, Gregário, por toda parte andava sozinho. Não lhe perdoaria tal afronta. E, desde logo, planeja a vingança, que consistiria na conquista da mulher do fiscal.

Certo dia, ao voltar Gregário de uma excursão pela mata, encontra no acampamento, sem mais companhia, a esposa de seu Zeca. Fez-lhe a corte, sendo energicamente repelido pela honrada senhora. Bandido! bradara D. Marocas ofendida com as propostas amorosas do mateiro. Deixa seu Zeca chegar que eu lhe contarei tudo, miserável!

Furioso, ante a atitude dessa corajosa mulher, Gregário prepara-se para subjugá-la, quando surge, de surpresa, o fiscal, que imediatamente fica inteirado do que ocorrera. Trocaram-se insultos e ameaças, e, por fim, é expulso da paragem o intruso insolente. O mau hóspede, sem força para reagir, no momento, arruma a trouxa e prepara-se para a partida. Antes de descer para o porto, ele desfranze o sobrecenho e esboça um sorriso feroz, misto de cólera e desprezo. Já à beira do rio, retoma a sua canoa e, de remo em punho, volta-se para os de terra e ameaça: eu voltarei por aqui, nha Marocas, e você amansa. Parte vagaroso, masca de fumo ao canto da boca, trauteando uma canção de morte.

A viração não começara ainda. A paragem, por enquanto, habitada somente pelo casal que guardava a praia, oferecia esse aspecto tristonho, cujo silêncio se interrompia por vezes, pelo pousar ou pelo grasnar dos urubus famintos.

Passam-se dias e mais dias e Gregário fica no esquecimento.

Seis e meia da tarde de um dia magnífico, e o fiscal que saíra cedinho não regressara ainda. D. Marocas já estava inquieta, quando avista, ao longe, no dobrar de uma ponta, uma canoa que se aproxima. O coração pulsa-lhe com violência. Seria de alegria, pela aproximação daquela pequena embarcação em que supunha vir o marido? Alguns minutos depois desfaz-se a dúvida. Ela reconhece a canoa e seu remeiro. Era Gregário que chegava. Amarrada a canoa ao porto, em um pau, ele dirige-se, sorridente à barraca e cumprimenta D. Marocas. Dá licença? nha Marocas, eu vou subindo, dizia, ao galgar o barranco. Já no interior do tapiri, depõe num banco que alí encontra, uma trouxa de “boia” fresca.

— Então, nha Marocas, eu bem lhe disse que voltaria. Já fizemos as pazes, seu Zeca e eu. Afinal, tudo tem seu dia. Olhe, prepare aquilo para a ceia. E entrega à desamparada mulher, o que trouxera tão bem entrouxado. Não tenha remorso, lhe diz, já fizemos camaradagem, no mato, não somos mais inimigos, seu Zeca e este seu criado, acabou-se tudo… Isto dizendo, e antes que a aflita criatura lhe fizesse qualquer pergunta ou observação, acrescentou: eu vou tomar banho e já volto, e desce novamente à ribanceira.

Amedrontada, mas, com esperança de ver chegar o esposo, D. Marocas injuria: covarde porque não deste cabo desta peste? Esse seu Zeca sempre foi muito mole. Ah! se eu fosse homem… E agora, se ele não chegar, o que será de mim? sozinha e sem arma de fogo.

Gregário

Desfeita a trouxa, cai ao chão uma posta de carne sangrenta que a pobre mulher apanha com repugnância. Trata da ceia. Um assado de tudo aquilo, que pesa mais de mil gramas. Servida a mesa, quando já de volta do rio o mateiro, este insiste com a dona da casa para que ela coma do assado, pois comera na canoa. Está cheio, nem mesmo nada lhe cabe. Só quer o café, depois.

D. Marocas recusa, não quer comer, deseja esperar pelo marido.

— Sirva-se, nha Marocas, torna com insistência o mateiro. Em regozijo da paz que fizemos no mato, eu derrubei caça grossa, para lhe oferecer e a senhora repugna? Quando seu Zeca souber, zanga com você.

Repetidos pedidos resolveram-na servir-se do assado, que era fígado. Levada a primeira porção à boca, D. Marocas reclama: gentes, até me admiro, por mais que eu queira, não posso engolir, não passa da boca, faz um bolo danado e não desce. Deita fora o bocado.

De pé, Gregário assiste à cena. Já queimado, ameaça: você tem de comer. Isso é luxo e já está me aborrecendo. Vá, engula, ou então… Não é de direito… Pois eu tenho o trabalho de ficar de vigia tanto tempo pra matar essa caça pra lhe dar de presente e você agora repugna?

Tremendo de medo, a infeliz, a custo, consegue deglutir o bocado.

Uma gargalhada satânica estronda dentro da barraca e na mata próxima. De olhar feroz, Gregário grita à dona da morada: então, está ou não mansa? Fica ou não fica minha amiga? Sabe você o que acabou de comer, nha sonsinha? Pois foi o figo do seu Zeca.

* * *

Horrorizado com a narrativa, indagámos ao amigo: afinal?

— Afinal?… Gregário, o comedor de fígado, como lhe chamam na ausência, respeitado e temido mesmo, continua a desbravar a selva imensa, a abrir caminhos no seio da floresta virgem deste colosso incompreendido, ora Inferno ora Paraiso Verde, para bem da civilização e grandeza da nossa majestosa pátria.


[1] Antigos navios de luxo de grande velocidade, geralmente movidos a vapor.


Leia mais sobre a cultura coariense em:

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Minhas memórias do festival folclórico coariense (1976–1993)

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