Search
Close this search box.

Cobra Grande do Lago de Coari, no rio Amazonas — 2021

Cobra Grande

João Melo

Escritor, poeta e pesquisador das culturas indígenas.


Nesse texto, observaremos um relato que mistura história com lenda, em que o personagem principal é a cobra grande.


Diz a lenda que, no final do século XVII e início do século XVII, antes do Frei Samuel Fritz invadir com suas canoas e sua fé (cristã) as águas do lago de Coari, os povos indígenas Catauixi, Iriju, Juma, Mura, Miranha e outros, viviam como Tupana (Deus) os colocou no mundo: quase nus, mas felizes e de acordo com a cosmovisão de cada um: os povos guerreiros guerreavam; os canoeiros remavam; os agricultores plantavam e todos festejavam as vitórias e as safras em festas comunais de acordo com os quartos das luas.

Naqueles tempos a alimentação básica era a caça, a pesca, os frutos e raízes dos pomares silvestres; e os alimentos produzidos na roça-de-toco, como: farinha, tapioca e pé-de-moleque.

O açúcar era retirado das colmeias das abelhas e o sal das cinzas do barro queimado dos barreiros das antas, porcos e macacos, os carboidratos da floresta e das águas.

A vida era naturalmente quase um paraíso.

O lago de Coari, maior beleza natural da região, era rico de pescados de todas as espécies, daí a densa povoação humana no seu entorno.

Essa magnífica região é formada pela desembocadura de três grades rios:  Coari, Urucu e Aruã, que de tão grande, dá a negritude do lago o aspecto de uma enseada do mar num fim de tarde.

Porém, quando a seca era grande, tornava-se muito perigoso atravessá-lo, dada sua extensão e por causa de uma enorme serpente que morava num poço central do lago; ela atacava as canoas ou igarités e sumia com seus tripulantes.

Corda de cabelos 

Catauari, líder maior do povo Catauixi, se dispôs a resolver o problema. Saiu em sua canoa de casa em casa para pedir a todos, homens e mulheres, que deixassem seus cabelos crescer até a região da panturrilha, quando poderiam cortá-los à navalha de paxiúba e, assim, os enviassem para a aldeia Patuá, sua moradia.

Nessa época, homens e mulheres deixavam os cabelos crescer como sinal de formosura. Para que os cabelos crescessem fortes, Catauari recomendou que os untassem com óleo natural de castanha, abundante nas margens do lago.

Após dois anos de coleta de cabelos, os homens e mulheres da aldeia Patuá começaram a trançar um cabo grosso, de aproximadamente duas polegadas de espessura e com mais de cem metros de comprimento.

De uma peça de madeira paracuuba (o âmago mais duro da região), Catuari mandou retirar um galho grosso, em forma de V irregular, ficando a parte mais grossa com dois metros de tamanho e a parte mais curta com 40 cm.

Colocou a mesma sobre o fogo brando por duas noites para ‘curar’ a madeira. Pediu que os guerreiros fossem ao mato caçar porcos catetos e trazê-los vivos, que fizeram e retornaram com quatro presos às varas.

O velho tuxaua observou que a cada sete anos tinha uma cheia e uma vazante muito grande. Este era o ano de seca grande.

Amarrou o cabo de cabelos ao pé de uma frondosa samaumeira no porto da aldeia Patuá e mandou todos os guerreiros se pintar para a guerra. Chamou o pajé Kaywé (o homem santo da aldeia) e pediu que defumasse o cabo.

Quando a lua escura chegou, ele prendeu na extremidade do cabo a armadilha de madeira com um porquinho, caçado e mantido vivo até esse momento.

Os canoeiros deixaram a embiara no largo do lago, preso a uma boia de madeira molongó, que a ajudava a flutuar.

O primeiro porco, após várias horas de luta contra as correntes, pereceu. Na outra noite, repetiu-se a tentativa, que, mais uma vez, fracassou. A cobra não apareceu e outro porquinho morreu.

Na terceira noite os canoeiros e guerreiros, armados de tições e gambás fizeram grande alarido nas proximidades do poço que diziam ser a moradia da cobra.

Após, colocaram dois porcos atados à armadilha para que se movimentassem com mais intensidade nas águas para chamar a atenção da cobra.

Próximo da meia-noite a ‘bicha’ boiou e se aproximou dos porcos, rodeou-os e verificou se estavam sadios. (Cobra não come animal morto ou doente – faro da mãe natureza).

De uma vez só, engoliu os dois catetos junto com o ardil de paracuuba. E deu a primeira correria ou estica para se livrar do cabo de cabelos.

O cabo entesou e balançou a centenária sumaumeira onde estava ancorado. Todos os guerreiros correram para suas canoas no intuito de finalizar a pesca da cobra-grande.

Catauari, do alto de seus 60 anos, ordenou: “Fiquem todos no barranco, longe da área de extensão do cabo; se ele arrebentar pode matar um ou mais”.

E todos o obedeceram.

A cobra corria de vez em quando, se aquietava um bocado e em seguida dava um esticão no cabo, fazendo o terreno ao redor da sumaumeira estremecer. É isso se deu até o meio-dia do dia seguinte. Quietude e correria.

Cobra Grande

Árvore gigante

A árvore gigante, símbolo da Amazônia, vergou seu majestoso caule no rumo das águas pela força da cobra. E, de repente, o cabo ficou sem tensão, livre da pressão da cobra.

O povo não acreditou no que viu. Após tanto esforço a cobra havia escapado. Recolheram o que sobrou do cabo. E cada um tomou o rumo de suas casas, sem condições de entender o que ocorrera.

Uma semana se passou. O rio ainda estava secando. Um indígena passando com sua canoa pela ponta da praia da Maresia, avistou a armadilha de paracuuba jogada na praia rasa. Apanhou a mesma e a trouxe para o aceiro da aldeia Patauá.

Catauari, mesmo desanimado, a recebeu e a colocou no pé da samaumeira torta e lá ficou por um bom tempo.

Hoje existe uma velha samaumeira no porto da aldeia Patauá, para lembrar a todos a tentativa do cacique Catauari em pescar a cobra grande.

Os índios velhos da tribo Catauixi juram que ainda é a mesma árvore, vergada desde o dia da pescaria da grande cobra do Lago de Coari!


Leia também:

A História do Miss Coari (1940 – 1979)

Minhas Memórias da Festa da Banana — 1989 a 1991

A Origem do Nome Coari

Minhas memórias do festival folclórico coariense (1976–1993)

Projetos desenvolvidos em Coari resgatam a cultura popular


Está gostando ? Então compartilha:

7 comentários em “Cobra Grande do Lago de Coari, no rio Amazonas — 2021”

  1. Essa mistura poética, do imaginário e realidade, faz das lendas regionais uma das literaturas mais originais do mundo. O próprio nome do estado, Amazonas, congrega daquela mesma mistura. A cobra não morreu, está adormecida debaixo da cidade, sua cabeça está agasalhada debaixo da catedral de Santana e São Sebastião, assim se ouve dos mais velhos, até hoje…

  2. Pingback: Da Ciranda Nordestina à Ciranda de Tefé – Cultura Coariense

  3. Pingback: BOIÚ-ASSÚ – Lenda Coariense 2 – Cultura Coariense

  4. Pingback: O Vinho e a Outra Face – Cultura Coariense

  5. Pingback: Eleitorado Macabro – Cultura Coariense

  6. Pingback: Deolindo Dantas - 1895 – Cultura Coariense

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

dança
Dança
Archipo Góes

Corpos em Movimento: Workshop Gratuito de Dança em Coari

O projeto “Corpos”, contemplado pelo edital Paulo Gustavo, oferece aulas gratuitas de Dança Contemporânea e Improvisação para jovens e adultos a partir de 11 anos. As oficinas exploram a expressividade corporal, a improvisação e o aprimoramento de técnicas básicas, com direito a certificado ao final do curso e uma demonstração artística para a comunidade.

Leia mais »
Garantianos
Folclore
Archipo Góes

Correcampenses x Garantianos

A crônica Correcampenses x Garantianos, narra a rivalidade entre os bois-bumbás Corre-Campo e Garantido em Coari, marcada por brigas e um episódio de violência em 1989. A retomada do festival em 1993 e a vitória do Corre-Campo geraram reações distintas. A crônica reflete sobre a polarização social, a cultura popular como identidade local e a importância da tolerância para a harmonia.

Leia mais »
Santana
Literatura
Archipo Góes

Um dia de Santana em Coari em uma Igreja Ministerial

O texto narra a vivência da festa da padroeira de Coari, retratando a devoção à Santana, a padroeira da cidade, e a importância da fé para o povo local. A narrativa destaca a movimentação do porto, a participação dos trabalhadores da castanha, a procissão, a missa e o arraial, revelando a religiosidade popular e a cultura local. A história do patrão e dos trabalhadores da castanha ilustra a exploração do trabalho na região, enquanto a presença do bispo e dos padres reforça o papel da Igreja Católica na comunidade. O texto termina com a reflexão sobre a fé, a esperança e a importância da preservação da tradição.

Leia mais »
Guadalupe
Literatura
Archipo Góes

O Trio Guadalupe – 1987

O texto narra as memórias da autora sobre sua infância na década de 80, marcada pela paixão por filmes de dança e pela amizade com Sirlene Bezerra Guimarães e Ráifran Silene Souza. Juntas, as três formavam o Trio Guadalupe, um grupo informal que se apresentava em eventos escolares e da comunidade, coreografando e dançando com entusiasmo. O relato destaca a criatividade e a alegria das meninas, que improvisavam figurinos e coreografias, e a importância da amizade que as uniu. Apesar do fim do trio, as memórias das apresentações e da cumplicidade entre as amigas permanecem como um símbolo daquela época especial.

Leia mais »
maçaricos
Literatura
Archipo Góes

Os maçaricos do igarapé do Espírito Santo têm nomes

Maçaricos, aves e crianças, brincavam lado a lado no Igarapé do Espírito Santo em Coari–AM. Um local de rica vida natural e brincadeiras, o igarapé variava com as cheias e secas, proporcionando pesca, caça e momentos marcantes como a brincadeira de “maçaricos colossais” na lama. O texto lamenta a perda da inocência e da natureza devido à exploração do gás do Rio Urucu e faz um apelo para proteger as crianças e o meio ambiente.

Leia mais »
França
Literatura
Archipo Góes

O boi de França e o boi de Ioiô

O texto “O boi de França e o boi de Ioiô” é um importante documento histórico que contribui para a compreensão da cultura popular e da tradição do boi-bumbá no Amazonas. Através de uma narrativa rica em detalhes, o autor nos leva de volta ao ano de 1927 e nos apresenta aos personagens e eventos que marcaram a introdução dessa importante manifestação cultural em Coari.

Leia mais »
Corpo Santo
Literatura
Archipo Góes

Um Corpo Santo e as serpentes na brisa leve e na água agitada

O texto “Um Corpo Santo e as serpentes na brisa leve e na água agitada” é um belo exemplo de como a literatura pode ser usada para retratar a realidade social e ambiental da Amazônia. Através de uma linguagem rica e poética, o autor nos convida a refletir sobre a vida dos ribeirinhos, a beleza da natureza e a importância da preservação ambiental e social.

Leia mais »
Rolar para cima
Coari

Direiros Autorais

O conteúdo do site Cultura Coariense é aberto e pode ser reproduzido, desde que o autor “ex: Archipo Góes” seja citado.