A lenda coariense Boiú-Assú sintetizada por Antônio Cantanhede narra o imaginário indígena para justificar a forma de uma castanheira da Vila Andrade.

Duas horas de chavascal adentro, após termos deixado o Lago de Coari, o vapor “Macapá” soltara aos quatro ventos, o seu apitar harmonioso, dando sinal de atracação, ao porto de Vila Andrade[1].
Lançado o pandeiro da retinida, levando o chicote do grosso cabo de arame à terra, por ordem do comandante que, de bombordo, na ponte do comando, dirigia a manobra, atraiu nossa atenção uma castanheira colossal, derreada, em volta da qual fora passado o cabo de vai-e-vem.
Era a primeira vez que víamos uma castanheira, sem a devida compostura…
Essa árvore, desde pequena, vem ereta, a olhar para o céu; cresce e se desenvolve altaneira, entre as outras árvores; alta, de proporções soberbas, com a copa sempre florida é, talvez, a mais bela das que enfeitam a floresta amazônica.
Nossa curiosidade aumentara, logo que pisamos na terra de Vila Andrade, situada à margem esquerda do Juma, rio de água preta, cujo nome faz lembrar a tribo de índios, que, em época remota, por ali habitara.
A história dessa castanheira é longa, dissera-nos o senhor Castelo, pessoa a quem nos dirigimos, a pedir informes; e levou-nos a vê-la de perto. Sua história prende-se a deste lugar, que outrora se chamou Boiú-assú, por ter sido aqui morta a maior cobra de que há notícia, nestas alturas.
Nesse percurso que fizemos, de poucos passos, nos explicou que Vila Andrade está em um pequeno torrão, ligado à mata geral, por uma estreita faixa de terra, um istmo.
Antigamente, neste mesmo lugar, dizia-nos o nosso informante, os índios reuniam-se para a celebração das festas. Pela proximidade do rio e devido a ser o melhor porto de desembarque desta redondeza, fora escolhido para morada do tuxaua da tribo dos Jumas.
Às dezenas e centenas, vinham índios de grandes distâncias passar aqui temporadas, nos prazeres dos seus festins, regados à caiçuma e ao cacherí, embriagadores.
Durante o correr dos festejos, era notado, entretanto, o desaparecimento de alguns dos convidados, até que um dia, quando sopravam o boré, fora observado um grande rebojo no porto. O som desse instrumento, ao que se acreditava, tinha a virtude de atrair as cobras, e com certeza, eram elas que levavam os desaparecidos.
Fizeram-se armadilhas e envenenaram-se as águas do rio, mas tudo em vão.
Certo dia, um dos moradores do lugar, por necessidade do momento, ao passar pela faixa que ligava o torrão à mata geral, observou que grande porção da terra ia caindo à água, como se arrancada por força viva. Atento, pode ver, com surpresa e cheio de terror, que uma cobra-grande tentava separar as terras, destruindo o istmo, naturalmente, para poder devorar de uma só vez, toda aquela gente, que ali se encontrava
Imediatamente comunica o ocorrido ao tuxaua e a tribo fica em rebuliço: flechas, pedras, toras de madeira foram lançadas, na direção apontada pelo índio amedrontado.
Reúne-se, então, o conselho dos anciões para deliberar.
Várias e absurdas algumas, foram as sugestões apresentadas, sendo vitoriosa aquela que assentava na pescaria do feroz inimigo da tribo. Servir-se-iam, pois, desse meio, e um dos presentes fora escolhido para isca.
Terminados os preparativos, meteram o infeliz em uma panela de grandes dimensões, adrede preparada que, jogada à água, ficara flutuando. Dentro, sentado, o índio-isca estava munido de um cacete, preso por forte corda de embiras, a qual vinha de terra, enquanto que ele estava solto, consistindo o seu trabalho, em atravessar o cacete no ventre da cobra, uma vez engolida a panela. O restante, os de terra fariam…
Horas de ansiedade precederam o momento de operar. Por ordem do tuxaua, tocou-se o boré.
Dentro de pouco tempo, a panela, movendo-se, desaparecia na voragem das águas.
Estava preso o ofídio, mas a corda retesada, com dois ou três empuxões, partira-se.
Outras panelas e novas vítimas foram lançadas à água em dias adiante, sem o mínimo resultado.

A última isca fora Japó, rapaz guapo, hábil caçador, noivo da bela Iací.
Como os que o precederam, ficara no ventre da serpente traiçoeira.
Desde então, Iací, retirada a um canto da maloca, quase louca de paixão, pela perda do bem amado, não mais tomara parte ativa nos folguedos, que não se interrompiam.
À boca da noite, descia à beira do rio a afrontar a voracidade do réptil devorador.
Cantava as suas trovas de saudade e adormecia, sorrindo, com a ideia de ser tragada pela cobra voraz, para assim juntar-se ao noivo que se fora.
As vítimas sucediam-se. Rara era a noite em que não desaparecia um dos festeiros.
Certa vez, reunido o conselho dos anciões, perante o qual não era permitida a presença de mulher, surge, desgrenhada e abatida, a figura minúscula de Iací, que suplica: “Pai, eu quero ser a isca da cobra-grande; eu quero ir também na panela, e te prometo que matarei a malvada”.
Voltaram-se todos, admirados, não da coragem da jovem indígena, não do ardente amor dessa intrépida cabocla, mas da sua audácia, em vir interromper os trabalhos de tão augusta assembleia.
Uma mulher a perturbar o conselho dos anciões! Bradam indignados os presentes e preparam-se já para expulsá-la do recinto, quando Iaci, rojando-se de bruços no chão da sala, chorando a sua grande dor, perde os sentidos. Os jejuns que passaram, desde a morte de Japó, tornaram-na enfraquecida.
O tuxaua ergue-se. O seu olhar está faiscante de cólera, e, ao fitar a pequena criatura desmaiada, apenas diz, como sentença: “Ela irá”.
Dissolvida a reunião, recomeçam os preparativos para a original pescaria, enquanto as danças, as bebedeiras continuam.
Os índios internam-se na mata, a procura de cipós e de embiras, para a tessitura da nova corda, enquanto Iací vaga, sem norte, pela beira do barranco, a cantar a sua dor. Está de semblante abatido, porém não demonstra mais aquela tristeza dos outros dias. Sentada, a olhar para o rio quieto, destrança os cabelos: Ela pensa que brevemente irá juntar-se a Japó, e sorri.
O conselho reúne, novamente, para resolver se Iací será a nova isca ou deve perdoar-lhe. Ela assiste ao julgamento. Discute-se, e afinal, a ré é absolvida, porque os índios Jumas, rendendo culto especial à mulher, não devem, mesmo como punição, expô-la a ser devorada pela cobra-grande. Entretanto, é escolhido um homem para substituí-la.
Desanimada, Iací implora, mas em vão. Então suplica que lhe cortem os cabelos e com eles teçam a corda que tem de segurar a panela. Seu coração dará resistência a esses fios negros que são brandos como carauá, porém mais fortes que o pau-d’arco!
O conselho ouve em seus debates, pela primeira vez, a voz de uma mulher.
Instantes após, todas as outras, seguindo o exemplo dessa heroica criatura, oferecem as vastas cabeleiras, e a corda é tecida, desta vez, com os cabelos negros das índias Jumas, solidárias com o gesto de Iací.
De cada lado da ribanceira soam os borés, chamando a cobra.
A panela, com a isca, flutua ao sabor das águas ligeiramente ondulantes.
Como das outras vezes, o escolhido está dentro dela, tendo à mão o cacete.
Forte rebojo anuncia a aproximação do monstro esfomeado.
Iací espreita e canta a sua loucura.
A panela roda e desaparece. Homens e mulheres fazem inauditos esforços para colher a corda, porém o animal opõe resistência, tentando arrastá-los. Então Iací, como uma leoa, toma da ponta desse trançado que é parte da sua outrora vasta cabeleira e volteia por detrás da castanheira mais próxima.
A árvore vai cedendo, vai-se inclinando para o solo, porém, resiste, e a fera, vencida, é puxada para terra. Apedrejada e furada com o murucú, custa, entretanto, morrer, mas, o veneno sutil completa a obra.
A alegria da vitória é imensa. Dançam e saltam em volta do monstro abatido. Satisfeitos, cada qual se apodera de uma tora de carne do animal: fazem o assado e comem…
Em breve, o festim transforma-se em alarido de dor. Envenenados, os índios se estorcem, em desespero, e muitos morrem.
Este lugar, desde então, passou a chamar-se BOIÚ-ASSÚ, concluiu o nosso informante.
— E Iací? Indagamos.
— Iaci, a louca, trazendo nas mãos emagrecidas um pedaço de carne a sangrar, vem sentar-se junto à castanheira derreada, e, como vingança, com os seus dentes afiados, dilacera o coração da cobra-grande.

NOTA: Boiú-assú, na Amazônia, é designativo de cobra-grande. Também o utilizam, para se referirem a enchentes grandes dos rios.
Boré — Instrumento musical dos índios (Flauta feita de taquara).
Iací ou Yacy — Lua.
Maloca — Habitação de índios.
Murucú — Espécie de lança, de pau vermelho, com uma ponta ervada.
Chavascal — Lugar, nos rios e lagos, onde afloram vegetais, parecendo, à distância, aí não haver água.
Fonte: Antônio Cantanhede — O Amazonas por dentro, contos, lendas e narrativas do Amazonas.
[1] A Vila Andrade fica localizada na margem direita do Rio Coari Grande. O rio Juma é mais distante, sendo afluente do Itanhauã, que é afluente do Rio Coari Grande.
Postagens Relacionadas
Realismo Fantástico, um poema do escritor coariense José Coelho Maciel.
Cordel escrito em 1992, pelo coariense Chagas Simeão sobre as belezas coarienses.
Um resumo sobre a morte do Prefeito de Coari Herbert de Azevedo em 1927, organizado por Archipo Góes;
Nesse texto podemos observar a narração da Lenda Caripira, uma das lendas mais clássica de nossa literatura Coariense.
1 comentário em “BOIÚ-ASSÚ – Lenda Coariense 2”
Pingback: O Tacho - Lenda Coariense 3 – Cultura Coariense