Artemis Soares
Francisco Vasconcelos, autor do livro O palhaço e a rosa, é um escritor que aborda temas como a infância, o amor perdido, a contingência da vida, a pobreza e a injustiça. Sua obra é resultado da vida que o autor promoveu para si e a que se submeteu.
Aqui não se trata de fazer uma análise psicológica de um homem, autor de uma obra que se chama “O palhaço e a rosa”, mas de uma curiosidade que poderá ser estendida a todos os autores que nos provocam riso e admiração: ler as suas obras, perguntando-nos de onde vem o talento para a escrita; o que os levou a escrever; o que significa, para eles, desenhar sinais numa folha de papel, numa máquina de escrever ou no ecrã de um computador, ou pensarmos a relação entre os seus textos e a realidade.
O autor de quem nós retiraremos as respostas que nos interessam ou que refletiremos sobre a sua obra enquanto a lemos chama-se Francisco Vasconcelos, oriundo da cidade de Coari, localizada no rio Solimões, entre os lagos de Mamiá e de Coari, e integrante do Clube da Madrugada.
Com o livro “O palhaço e a rosa” fez a sua estreia como autor, no ano de 1963, publicado pela editora Sergio Cardoso & Cia. Ltda. Ele oferece-o a sua esposa, Gracy, a sua mãe, aos irmãos, Aida, Alice, Aluísio e José, e à memória de seu pai.
“Aos companheiros do grupo madrugada, mensageiros de uma nova hora, a minha primeira colheita”. Dedica-o, ainda, a Paulina Kaz, João Bosco Evangelista, Antônio Cruz Neto e Carlos Gomes. Vasconcelos, membro do Clube da Madrugada, era, também, mensageiro de uma nova hora. Busquemos entender o que isso significa numa terra em que a literatura era escassa e que, geograficamente, ficava muito distante dos centros em que fervilhavam ideias, transformações e revoluções.
Estávamos na década de 1960, quando vivemos a ditadura militar, o Tropicalismo, a Jovem Guarda, movimentos musicais que marcaram a música popular brasileira, a chegada da televisão a cores, dos primeiros computadores, da chegada do homem à lua, da emancipação da mulher. Portanto, vivíamos uma nova hora. E cabia aos escritores e artistas, principalmente, dizer por que a hora era nova. De início, uma pasta de cartolina, amassada e suja de tanto manuseio. Dentro dela, muitos manuscritos, propostas do que poderia ou não ser dado a público. Eram palavras que se enganchavam umas nas outras, gerando pensamentos, tentando formar argumentos, para dizer algo sobre o mundo: a natureza, as cidades e as pessoas. E sobre estas, falar de sentimentos. Depois da pasta de cartolina, a entrada no universo da técnica: a pequena máquina de escrever que tornaria as letras elegantes, que se apresentariam de forma delgada, perfeitas nas folhas de papel e que facilitariam a leitura de quem por elas se interessassem.
Em “O palhaço e a rosa” o autor nos oferece contos, divididos em duas partes. A primeira é como se fossem endereçados para a infância, por exemplo, “O menino e o mundo”, “O menino e a lei”, “Soldadinhos de chumbo”, “O palhaço e a rosa” e “O Pierrot”. Neles, em contos curtos, se encontram a infância e a adultez, num embate que dura para sempre em cada um de nós, representado pelo pião, que roda no chão, e na cerveja, que roda na cabeça. Como também marca o encontro com um homem, que foi um menino que não recebeu amor, solto nas ruas; adulto, foi condenado a apodrecer numa cadeia. E os soldadinhos de chumbo, num campo de guerra que não tinha mais do que os dois metros de uma mesa de jantar; depois, numa guerra que tirava vidas, assim como incrustava estrelas no ombro do oficial. Esses são três contos que pontuam o conflito que se instala em cada um de nós, assim como mostra a convivência do autor com um mundo que se desumaniza há muito. Nos três contos, a realidade, o fora; a consciência, o dentro, de cada um de nós. Os dramas são diferentes, mas os sentimentos igualam-se.
O conto “O palhaço e a rosa” nomeia este livro. Ao contrário do que se poderia esperar, talvez um palhaço, ao final do seu espetáculo, oferecendo uma rosa, deparamo-nos com um quadro trágico. Primeiro, um amor que não se concretiza. O palhaço brinca com a rosa, deixando cair uma pétala no chão, que é esmagada. Segundo o embate que travaremos, mais cedo ou mais tarde, com a morte. Neste momento crucial, saem do palco o amor, a alegria e a felicidade. Tudo se concentra na vontade de viver e na esguia morte, que vem chegando, tirando todos de cena, para elevar-se. É, então, que o palhaço, significante de tristeza e de perda, se manifesta, brincando com uma lágrima.
Os contos de Vasconcelos teimam em chorar o amor perdido, como é o caso de “Pierrot”. É conforme os tempos em que vivíamos: de mudanças, de construção de rumos e de desejos novos. Uma luta constante contra a contingência, e, ao mesmo tempo, a certeza de que ela é absoluta. Nesse sentido, a dúvida impõe-se, pois se sabe que tudo o que se pode ver à volta é passageiro. Então, para o amor, o símbolo é um Pierrot.
A segunda parte apresenta contos mais extensos. Inicia com “O boleiro”, que traz como personagem principal um menino, Zequinha, o vendedor de bolo de macaxeira. O garoto que não sabia mentir, ao achar uma carteira, ficou em dúvida se pegava o dinheiro correspondente a todas as fatias de bolo, voltava para casa, entregava-o a sua mãe e ia para o futebol, realizar a vocação de criança. Não pegou o dinheiro. Mas foi tachado de ladrão.
A vida é dinâmica. Tantas vezes ouvimos alguém nos dizer isso. O velho Heráclito, desde a Grécia Antiga já nos havia ensinado. Todavia, este é um refrão que não só nos chega pela boca de outros como nos repetimos sempre, principalmente nas horas difíceis. Também ouvimos infinitas vezes se dizer que sem sonho não há jornada. É o que se lê no conto “O ajudante de caminhão”. Macário, o chofer de caminhão da fábrica de bebidas, queria correr mundo, aventurar. Seu ajudante, Estêvão, queria dirigir um caminhão. Este era o seu sonho. Mas a vida ingrata que muitos trazem como destino entrega-o a morte que se antecipa. É esta a lógica dos contos de Vasconcelos. A vida lutando, dentro de nós, contra a morte; o destino, trágico para uns; para outros, chega vestido de sedas e pedras preciosas.
O palhaço e a rosa expressa os tempos de Brasil. Tudo parece desmoronar. Os nossos sonhos de democracia, de fausto esvaem-se, sobra, para todos ou quase todos, a crueza da vida. A pobreza, que nos acompanha desde o início da humanidade, mostra, principalmente em tempos de crises, todo o dano que ela poderá causar. O autor de O palhaço e a rosa traduz seu tempo e apresenta-o na sua dureza e no desamparo daqueles para quem o destino esconde a leveza.
O autor sobre o qual intentamos compreender a escrita foi um profundo observador do cotidiano. O seu livro de estreia dá-nos conta disso. Também foi um perscrutador da alma ou da consciência, e, ainda, um homem que compreendeu a importância de conhecer a sua terra natal. Pode-se dizer que um dos livros mais interessantes sobre a Amazônia saiu da sua produção. Fala-se do Regime das águas. Para se dimensionar a importância do livro, temos que começar a sua leitura dando especial atenção à epígrafe, da autoria de Peregrino Júnior:
Nascem, crescem, vivem e morrem na beira do rio. Quer dizer: dentro d’água, na intimidade da água, na contemplação e no amor físico da água. Nem sabem viver longe dela. A água é o seu mundo e o seu destino. Vivem em função dela, e fora dela nem sabem se mexer. O Bem e o Mal – o prazer, o trabalho, o repouso – tudo eles encontram no rio, no igarapé, no igapó – na água…
Um autor talentoso, que escreve com sangue, como exige Nietzsche, cuida do seu livro: da capa, do conforto do seu leitor, de cada letra, de cada ponto, de cada argumento. Assim, uma epígrafe, quando bem pensada, deverá ser lida juntamente com o texto, pois ela é um norteador; ela antecipa as ideias que fundamentam o texto. Assim sendo, teremos uma leitura, aqui, que não banaliza o ribeirinho, o homem que tem como universo a água. O romance de Vasconcelos escapa ao senso comum que faz do homem dos beiradões um encantado com as luzes da cidade. Ele não generaliza. Não transforma o sonho de uns no sonho de todos. É bem verdade que muitos são seduzidos pelas luzes e notícias falsas das metrópoles. Muitos não emprestaram de Ulisses o ardil para escapar do canto da sereia. Mas outros preferiram, e ainda preferem, o risco de serem encantados pelas botas (botos fêmeas).
O autor, nascido na cidade de Coari, teve a oportunidade de ver lugares diferentes, desde a infância, pois seu pai era militar. Muito cedo, aos 11 anos, com a perda do seu genitor, teve que trabalhar para ajudar a família. Aos 16 anos, ele que retornara para Coari, deixou a terra que lhe permitiu a vida e veio para a capital. Estudou, tornou-se advogado, militou em favor da democracia, da cidadania, da cultura e do conhecimento. A sua obra é resultado da vida que promoveu para si e a que se submeteu, porque há leis e emaranhados que não nos cabe desviar. A sua ficção incorre pelos caminhos da concretude e dramaticidade com que vivemos as nossas vidas. O seu palco é o da contingência.
É o que se encontra no romance O regime das águas. Para os ribeirinhos, as águas não são tão misteriosas como para nós, que moramos nas cidades. Para quem vive nos beiradões dos rios da Amazônia, o tempo divide-se em duas fases: a da enchente e a da seca. É sob o movimento dos rios, das águas que sobem e das águas que descem que o caboclo organiza as suas vidas. Pode-se também pensar numa vida expectante, uma vez que é a expectativa que alimenta os seus dias. É nessa expectativa que ele ouve, assiste e especula sobre o ir e vir das águas, sobre as plantações que não terão tempo para oferecer o alimento; sobre os produtos que não poderão gerar outros produtos; sobre os animais que padecerão juntamente com os homens.
São as mesmas águas as que levam o desalento e a miséria; mas que trazem a promessa da vida, a novidade que chega, sempre, como renovação. São as mesmas águas que disfarçam a decadência, vestindo-a de esperança:
Na verdade, àquela altura, outra coisa não se podia esperar. Não fora sempre assim? Bem lembrados e ainda muito sentidos eram os efeitos da última grande enchente, os casebres de palha se espalhando na periferia da cidade, miseráveis palhoças flutuantes se insinuando ao longo dos outrora limpos igarapés e, nas ruas, de forma incontrolável, a mendicância crescendo a cada dia, enorme ferida exposta.
O cenário não poderia ser outro senão Manaus, a capital do Estado do Amazonas, que infla e se retrai, como se fosse um imenso coração. Como as cidades são a representação das pessoas; como elas vivem, crescem, sofrem e morrem como as pessoas, elas juntam-se para dar cores aos mesmos dramas. Então, a literatura, que não tem quaisquer compromissos com a realidade, porém, que sem esta não poderia existir, faz nos conhecer lugares, sentimentos, matéria e espírito que, de outra forma, seria impossível. É por meio dela que mais poderemos alcançar o sem fundo que somos. Se é impossível saber quem somos, as aproximações que nos são possíveis são facilitadas pela literatura. Nesse sentido, se queremos nos aproximar dos distantes de nós – os ribeirinhos – o livro de Vasconcelos é uma ótima sugestão.
Não há, na escrita de Vasconcelos, lugar para a pena ou a esmola. Ele não traz o seu ribeirinho para receber os nossos suspiros piedosos ou palavras de conforto para miseráveis, condenados pela natureza e por certos homens, aos quais cabem as decisões para uma sociedade igualitária e cidadã. O ribeirinho que temos o prazer de conhecer é forte, decidido, conhecedor da natureza e amante do próximo. Calado, pensativo, muito mais ouvinte do que falante, assim conhecemos Zé Pedro, um exemplo para todos os que admiram aqueles que escutam os sons que promovem a vida.
O Clube da Madrugada cumpriu em Manaus algumas das aspirações da Semana da Arte Moderna. Vasconcelos traz para a literatura, com uma forma de dizer que demonstra o burilamento da palavra e da ideia, a realidade amazônida. A sua escrita chega tão próxima da realidade que poderíamos dizer que se trata de realismo, pois o que é nuclear para o autor é apreender o homem no seu habitat. Mas não é apenas apresentar um cenário e dar-lhe voz. Na sua escrita, tudo é pleno de vida: o homem e a natureza, pois somente assim poderemos respeitar e amar os dois. São palavras encontradas no livro Casa ameaçada.
Ao contrário do que geralmente ocorre com relação às obras ditas de ficção, neste livro, lamentavelmente, nem sempre poderá ser vista como mera coincidência qualquer semelhança que possa o leitor identificar com pessoas vivas ou mortas, ou até mesmo com instituições, sejam nacionais ou estrangeiras.
O excerto reporta para o que afirmamos: a realidade que se manifesta na obra de Vasconcelos. Neste sentido, qual o lugar da ficção? Uma pergunta que impõe a leitura atenta de cada parágrafo e que, ao final, nos proporciona uma luz para compreendermos o que se pode chamar de literatura. Entendemos que uma boa compreensão da obra do autor em questão é concluir que ela traz a realidade vestida de fantasia. Pois, se assim não é, trata-se de História. E isto não escreveu Vasconcelos. Jamais buscou o autor a verdade; jamais tentou ele justificar os seus argumentos. A Literatura não busca nenhuma verdade; não justifica o que ela expõe. O seu compromisso é com ela mesma. A verdade é a sua verdade, presente no espaço da obra e nas palavras que se articulam. A forma, como as palavras se organizam em um texto, de termina qual é o seu discurso, de onde provém a evocação – se do passado, do presente ou do futuro, pois não há espaço delimitado para a criação literária. Para ela, não há tempo, não há espaço. Existe ela, triunfante, livre, coberta de ouro, prata, luz, sangue ou treva.
A leitura e a emoção que sentimos identificam o que temos diante dos nossos olhos, abraçado pelo nosso espírito:
Lembrava-se que, por ocasião do retorno, ao sobrevoar aquela imensidão de água e de floresta, experimentara, com grande intensidade, a revivência dos distantes tempos da infância. Que transformações observaria ao retomar o contato com aquela realidade? Vista do alto, a paisagem em quase nada parecia ter-se alterado. Apenas uma clareira aqui, outra ali, como cicatrizes marcando a densa mataria. Mas não era tanto a paisagem que lhe ocupava a lembrança, causando-lhe apreensão. Que seria daquela gente que um dia ali deixara? Quantos, olhando para trás, teriam a ventura de se sentirem, de alguma forma, vencedores, como a tantos parecia ser o seu caso? Foi exatamente naquele instante que se impregnara da ideia de que algo poderia fazer. Chegara-lhe, finalmente, a oportunidade de atuar em cima daquela realidade e, tanto quanto possível, contribuir para modificá-la.
Ainda que personagens e instituições sejam reais, o revestimento da narrativa retira-a do campo do factual e transporta-a para o da criação fantasiosa, que é o que marca a Arte e, nela, a Literatura. Ainda lhe permitindo o olhar que atravessa a aparência, que não se sabe por quais mistérios lhe permite ver o além-fundo de todas as coisas. É coisa de Deuses. É coisa da Palavra. É o banho da metáfora e a harmonia das palavras que, como o banzeiro, geram o ritmo que nos tranquiliza, deixa em suspense ou aterroriza. A Palavra na sua ação, realizando a sua missão. É a busca de si mesmo, a vontade de saber quem somos que, essencialmente, move a Literatura e vivifica a Palavra.
A narrativa de Casa ameaçada marca um dos encontros do autor consigo mesmo, com a sua terra e responde a uma pergunta necessária a cada um de nós: Quem sou eu? Na terceira pessoa, o autor põe a si mesmo como personagem. A sua berlinda é vista em tripla dimensão. O seu inquiridor tenta, sob todos os ângulos, dar-lhe uma resposta. São as questões que, vez ou outra, insistem em tomar conta dos nossos pensamentos. A Literatura dá-nos respostas. As ferramentas que nem todos possuem para questionar e compreender são destinadas a alguns que, ao olharem para dentro de si mesmos, oferecem-nos possibilidades. De outro modo, é a palavra que se desprega da história de um e alcança a de todos.
Em acréscimo, muitas das coisas que o cotidiano nos impede de saber ou ouvir falar, um livro pode nos presentear:
Lembrava-se do último conflito que sua geração testemunhara, atônita ante os absurdos crimes nele praticados, estranhamente em nome da liberdade. O Vietnã em chamas e, nos jornais do mundo inteiro, a impassível postura do prisioneiro inimigo na expectativa do certeiro tiro a dois palmos de sua cabeça. Da mesma época, inevitável era a lembrança daquela menina nua e indefesa, a pele se decompondo sob os terríveis efeitos do napalm. Quanta insensatez! Agora, com requintada estratégia que a evolução tecnológica ensejava, outro conflito se anunciava pressuroso e terrível. O Golfo Pérsico, aquele descomunal bolsão de interesse e de incontidas ganâncias, imitaria o horror do inferno. Um novo satã surgira ameaçador, mais uma vez “comprometendo” a tranquilidade do mundo, e urgia exorcizá-lo. O preço? Não importava o preço. Nos céus de Bagdá, as setas de fogo cruzariam o espaço e transportariam o pavor, divertindo os que se posicionavam à distância com a visão ampliada dos vídeos-games com que diariamente milhões de crianças, em lúdico exercício, punham em prática o nervoso aprendizado da defesa e do ataque, indiscutíveis exigências de um amanhã de incertezas.
A história da geração de Vasconcelos é relembrada. Por meio da literatura, ele presentifica e analisa o momento delicado que atravessava a humanidade. As guerras, cujas motivações permanecem as mesmas, continuam dizimando milhares de pessoas. O mesmo filme se repete nos nossos tempos: outros espaços, outros atores, mas os mesmos sofrimentos. Muitas vezes, nas guerras do cotidiano, não conseguimos alçar maiores níveis de compreensão, por isso não reunimos as condições para acompanhar e compreender o que acontece a nossa volta. Mesmo com o avanço tecnológico, com as comunicações ao vivo, com as informações em tempo real, por exemplo, a Copa do Mundo que acontece na Rússia.
O autor de O palhaço e a rosa tem no cotidiano a matéria da sua escrita. Foi assim no seu primeiro livro, que utilizamos para nomear este texto; com o Regime das águas, que nos oferece um retrato da Amazônia e nos faz ver a grandeza do ribeirinho; Casa ameaçada reúne reminiscências, o trabalho como bancário e a mirada sobre os acontecimentos que marcaram a sua geração. A mesma postura se repete no livro Meus barcos de papel.
O nome chama a atenção e desperta as expectativas para o seu conteúdo. O cheiro da infância, da fantasia. Nós, os seus leitores, imaginamos crônicas que remetam para os sonhos. É sabido que a infância a ser falada só poderá se revelar pela palavra de um adulto. Então, extraordinário será aquele que, a exemplo de Miró, deixar-se habitar por uma criança durante toda a sua vida. Mas a surpresa chega: não se verá, aqui, lembranças de uma infância risonha, ao contrário, o sonho que aqui o autor se reporta é o aparentado da utopia. A lembrança que se evidencia é a de tempos de lutas e de esperanças fracassadas, que produzem a apatia e a alienação. É o desejo de escapar do mundo e crer que há mundos melhores. Porém, o mundo de cada um é o que lhe pertence para sempre. Aqui não se facilitam permutas ou empréstimos.
De repente, uma agradável novidade:
Um dia, porém, aconteceu que uma rosa se abriu. Era pequena e sem jeito. Tocando-a de leve, receoso de que lhe caíssem as pétalas mal desabrochadas, detive-me a olhá-la e, por estranho e doce mistério, trazia-me ela, a sugestão de inúmeras presenças, todas responsáveis por aquele estado de espírito que tanto me fazia querer uma rosa e olhá-la em incontido devaneio, como se fosse a primeira namorada ou primeiro filho.
Mas as lembranças, que poderiam expressar apenas o encontro com a infância, fazem outro registro: o da comprovação de que a vida é dura demais e de que tudo é contingência. Porém, a esperança guardada por Pandora, devolve-nos a crença no amanhã luminoso.
Ah! O sorriso de minha rosa pequenina e sem jeito. Quisera dá-lo a quantos continuam a cumprir a lei do amor, na sempre espera do amanhã que seu amor constrói; àqueles que, mesmo lutando e sofrendo, jamais abandonaram a esperança da messe prometida.
É para esses que se destina a Rosa de Vasconcelos. Em tempos de ditadura, de perda de amigos e da liberdade, restava aos autores, aos artistas o reencontro consigo mesmos para compreender o que pode ser o enigma que somos. A nossa história é a de guerras, de desencontros, de paz, de reencontros. A corda bamba é onde tentamos nos equilibrar. Alguns poderão ver de outra maneira ou viver de outra maneira, mas não será realmente uma vida vivida. Não poderemos dizer qual o viver mais interessante, pois cada um tem a vida que lhe é possível.
A crônica “Meus barcos de papel” traz lembranças da infância. E nelas a constatação da finitude e a duração, também finita, na memória. Escapam da finitude absoluta aqueles que se tornam universais. E, ao contrário do que se poderia pensar, não temos a lembrança ingênua que almejávamos:
Ah! Como dói, realmente, a gente não mais brincar e não ver, com os mesmos olhos, a brancura de uma flor sob a ponte verde. Secaram-se todas as flores, e a ponte, velha, talvez destruída, retrata, com absoluta precisão, os dias que não voltam mais.
O que o autor nos mostra é que, na verdade, não é possível o encontro com a infância. Para procurá-la, teremos que estar preparados para recebermos os seus destroços. Não há espera. A ampulheta não interrompe a sua passagem, aparentemente imóvel.
A reflexão profunda sobre o que somos, a partir de si, é o tema central da obra de Vasconcelos. Não podemos dizer se ele foi um homem triste, solitário; se não saboreava com prazer ou uma cerveja, ou um vinho. O que sabemos é que a dor foi um dos temas centrais da sua obra. Por exemplo, em “O menino e o velho”:
Sofrendo ao pensar que ele também haveria de crescer, como era comum acontecer à maioria dos homens, e não lograsse encontrar a exata medida que lhe ensejasse uma vida sem tristeza, perguntou certa vez a seu pai:
– Por que você é assim?
– Assim como, filho?
– Assim, grande e triste?
O pai do Menino ensaiou um sorriso e, surpreso, devolveu-lhe a pergunta:
– Eu, triste?
Tão ocupado andava o pai do Menino, que jamais percebera a própria tristeza.
A vida que não poupa nenhum de nós: muitos enlouquecem; muitos emudecem; muitos entristecem; muitos antecipam a retirada. Mas temos sempre uma chance de recomeço: nos filhos que chegam, nos netos que nos continuam e que nos mostram um futuro até que a memória nos descartes. É o que nos apresenta O Menino e o Velho. Só precisamos aceitar – a velhice e a meninice.
A obra de Vasconcelos tem como tema central o homem. É principalmente em O Menino e o Velho que justificamos a nossa afirmativa. Veja-se o excerto:
Ah! Os homens. E quão versáteis eram quase sempre! Entre uma lágrima e um sorriso, nenhuma distância, nenhum esforço a fazer. Entretanto, seria lícito culpá-los por tal procedimento? Quem sabe, não punham em prática nada mais que uma faceta de sua própria condição humana, muitas vezes indispensável à felicidade e ao bem-estar, deles próprios ou de quantos viviam a seu lado? Se assim era, os gestos e as atitudes, por mais falsos que parecessem, desde que ocorressem por inarredável conveniência, corresponderiam, em última análise, a um bem para os homens. As máscaras, assim lhes seriam de grande utilidade e plenamente justificável e válido o gesto de usá-las. A sinceridade, ou, em outras palavras, o exercício de ser com autenticidade, reconhecia o Velho com inevitável amargor, além de constituir pesado fardo para muitos, ofendia e aviltava, na maioria das vezes.
Em cada texto, em cada ideia, é o Velho o personagem principal deste escritor que nos deixou recentemente. É pena que muitos autores não atinjam muitos leitores. Talvez seja lamentável dizer que não conseguimos formar, no nosso Estado, um público leitor capaz de levar a distantes lugares obras relevantes, como a de Vasconcelos. Todos só temos que lamentar, não por que ele trate da Amazônia, a sua paisagem de terra firme e várzea; de homens como Zé Pedro, que dialogou com as águas e compreendeu o que elas queriam que ele soubesse, ou do Velho, que se valeu da artesania para, no seu labor, de paciência e compreensão, escutar a alma dos homens.
É de se lamentar que o seu tempo não tenha escutado a sua voz. Mas esperemos o tempo da História.
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3 comentários em “O homem que escreveu sobre o palhaço e a rosa – 2018”
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