O texto Quebra-Queixo é um conto de Erasmo Linhares que narra o personagem de uma cidade pequena e seus conflitos de juventude.
Um sonho presente
Um dia sonhei
Chorei, de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.
(Manuel Bandeira)
Foi batizado Antônio. Quando criança o chamavam de Tonho, depois virou Quebra-Queixo, no folclórico das gentes daquela cidadezinha perdida nos ermos do alto rio. O apelido lhe veio dos caroços que tinha no rosto. Igualzinho àquele doce que se faz de açúcar e castanhas-do-Pará. Sequelas das espinhas que lhe nasceram no rosto, assim que entrou na adolescência, sem que soubesse tratá-las.
Quebra-Queixo jamais vira uma mulher inteiramente nua. Tinha ideias vagas que colhia nas conversas com os amigos, que escutava quase sempre calado, remoendo-se por dentro.
Ia a algumas festas, mas ficava recolhido a um canto, deixando a cerveja esquentar na garrafa.
Seus familiares se afligiam. Temiam por sua masculinidade. Mas não era isso. Ele tinha vergonha do rosto. E por causa disso não se aproximava das mulheres.
Já passava dos vinte e cinco anos e embora trabalhasse na única olaria da cidade, olhava as colegas de esguelha, fingindo que não as via.
Não que lhe faltassem desejos de possuí-las ou, pelo menos, de namorá-las. Este, aliás, era seu grande tormento. À noite, deitava-se com todas elas, nos devaneios de suas longas madrugadas. Amava profundamente a formosa Joaninha, formosa e fogosa, filha de dona Orlanda, em plena flor da juventude, os pequenos seios saltando sob a camisa, fazendo ritmo frenético com as grossas coxas e as ancas protuberantes. Mas a evitava. Nunca a olhava, quando, por acaso, cruzava com ela no meio da rua.
Exacerbava-se no prazer solitário, mas chegou o dia em que enjoou de tudo isso, os amigos o estimulavam, mas Quebra-Queixo tinha vergonha até mesmo de prostitutas. E foi justamente uma delas que o iniciou nos mistérios do amor. Obra tramada, às escondidas, pelos amigos. Conversaram, com muita lábia, a Quitéria Bundona.
Mesmo sendo topa-tudo, Quitéria vacilou, mas diante do que lhe ofereceram, não tardou a aceitar a incumbência.
Aguardou um momento propício e, depois de uns dez minutos de conversas, arrastou Quebra-Queixo para o quartinho de estância, cuja dona os alugava para encontros amorosos. Quebra-Queixo foi entre contente e angustiado.
Quando a mulher se despiu, teve um frêmito que quase o leva ao desmaio. A antiga prostituta o reanimou com carinhos que ele jamais imaginara existir. Quebra-Queixo entregou-se depois de umas rápidas instruções. Mas, quando chegou ao clímax, foi apagando lentamente e hirto sobre o corpanzil da mulher. Quitéria, entre o temor e a raiva, jogou-o de lado, vestiu-se e foi embora.
À saída, amigos o esperavam ansiosos.
— Como foi? perguntou um deles.
— Não sei. De repente, luz foi-se apagando de meus olhos.
A experiência o transformou. Quebra-Queixo tornou-se ladino. Deu de olhar as mulheres de frente. Uma vez piscou para a mulher do Cipriano e levou uma poderosa bofetada. Escreveu um bilhete apaixonado para a Joaninha, mas, por precaução, não o assinou. A jovem o atribuiu, confusa, aos rapazes aos quais secretamente, desejava.
Num domingo, Quebra-Queixo bebeu além da conta e, com a alegria álcool, resolveu ir à casa de Dona Orlanda. Bateu palmas e pediu para falar com Joaninha. Quando a moça apareceu, espantada ao vê-lo, Quebra-Queixo foi dizendo sem delongas:
— O autor daquele bilhete que você recebeu sou eu. Quer casar comigo?
Joaninha não respondeu. Saiu correndo em prantos e Quebra-Queixo ficou parado onde estava bêbedo e confuso. Um minuto depois, o ódio começou brotar como erva daninha. Correu para o meio da rua e o alto que pôde, gritou:
— Vá à merda, sua puta.
Dona Orlanda desmaiou.
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4 comentários em “Quebra-Queixo — Erasmo Linhares — 1999”
Mais um conto de Erasmo que brinca com a intimidade e sensualidade de seus personagens. Nos faz lembrar de velhas lembranças de outras épocas e de outros comportamentos. Parecíamos todos inocentes.
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