Nesse texto do professor Bessa Freire temos uma narrativa de sua experiência no seminário de Coari com o Padre Marcos na década de 1960.
17 de novembro de 1995
Os seminaristas de Coari eram obrigados, anualmente, a fazer um retiro espiritual. Durante três dias, era proibido brincar, rir, estudar, bater papo. Silêncio absoluto. Todo mundo se concentrava exclusivamente na meditação e na oração. Um padre era escolhido como pregador, para orientar, com suas palavras, a reflexão sobre determinados temas. No final, cada um de nós saía arrasado, na maior “fossa”, com um sentimento de culpa por ter feito algo de errado, que não sabíamos bem o que era. O retiro era triste.
O ano de 1960 foi atípico, porque o pregador do retiro chamava-se padre Marcos Wenninger, o que prometia um retiro alegre. Na sua primeira fala, ele entrou na capela com um balão vermelho, vazio. Contou a história do João, um menino que morava no bairro de Chagas Aguiar, em Coari. João tirou boas notas na escola, achou que era o bonzão e sua cabeça se encheu de orgulho. Aí, o padre Marcos deu uma soprada no balão. João foi jogar bola, fez dois gols e acreditou que era o rei da cocada preta. Sua cabeça continuou enchendo de soberba e aí o padre Marcos deu outra soprada.
João continuou obtendo pequenos êxitos e, se sentindo o “o” do borogodó, aproveitou para humilhar os outros. Cada sucesso, era uma soprada no balão que o padre Marcos dava. E, de soprada em soprada – pou! – o balão explodiu. Com ele, a cabeça do João. E a nossa também. A soberba e o orgulho besta não resistem uma lancetada de alfinete.
Esse foi o retiro mais animado da história do seminário de Coari, com lições profundas, didáticas, claras e, sobretudo, alegres, graças à capacidade de comunicação do padre Marcos, que sempre soube estabelecer cumplicidade, sobretudo com os jovens.
Lembrei-me dessa história agora que o padre Marcos, depois de 56 anos, volta para os Estados Unidos, deixando uma enorme saudade entre todos nós que convivemos com ele. Ele sabe disso. Mas não custa nada repetir: nós já estamos com saudade. E gostaríamos de dizer isso pra ele. Aproveito para ressuscitar uma crônica publicada no dia 17 de novembro de 1995 em A CRÍTICA, intitulada “Padre Marcos”. Ela dizia o seguinte:
Os primeiros padres redentoristas chegaram a Manaus, vindos dos Estados Unidos, em 1943, em plena guerra mundial. De lá até hoje, passaram pelo Amazonas aproximadamente cem missionários norte-americanos. Mais de vinte morreram. Alguns abandonaram o sacerdócio. Outros retornaram ao seu país de origem. Atualmente, existem apenas catorze trabalhando na Vice-Província de Manaus. Um deles é o padre Marcos Weninger, que aqui chegou em abril de 1951.
Hoje, 17 de novembro de 1995, às 18:00 horas, o padre Marcos estará entrando pela porta principal da igreja de Nossa Senhora Aparecida, numa procissão, acolitado por uma fila dupla de 25 meninos, simbolizando os 50 anos em que tornou-se membro da Congregação Redentorista, quando fez sua profissão de votos. Em seguida, vai concelebrar uma missa solene com todos os seus confrades. Redentoristas e paroquianos de Aparecida comemoram este meio século de dedicação ao trabalho pastoral.
Quem conhece o caráter do padre Marcos, sabe que ele é discreto e não gosta muito de oba-oba. Mas não há como fugir da homenagem: meio século é uma vida. Para alguns, são muitas vidas. Durante esse período, ele administrou sacramentos, anunciou a boa nova, catequizou, pregou missões e retiros espirituais, orientou vocações sacerdotais, conviveu com a juventude, fez viagens de “desobriga” pelo interior do Amazonas, varando paranás e igarapés. Enfim, acabocou-se e, como caboco, junto com o cálice, aprendeu a usar a cuia. Ele está no meio de nós.
Quem conviveu diretamente com o padre Marcos, como eu, sabe que foi um privilégio tê-lo como confessor no seminário redentorista de Coari, talvez porque a imagem do Ser Supremo que ele oferecia era a de um Deus justo, mas tolerante. Não era a de um carrasco, pronto a punir o primeiro vacilo. Era a de um Deus magnânimo, bom, que sabia perdoar. Um Deus legal, compreensivo. Enfim, um Deus que é Pai e não Delegado de Polícia.
Quando se tem a sorte de ser apresentado a Deus pelo padre Marcos, aquele clichê desgastado de um ser divino carrancudo e vingativo cede lugar à imagem de Deus alegre, que celebra permanentemente a vida, que atende ao nosso pedido insistente e diário de não olhar para os nossos pecados, mas para a fé que ilumina a igreja e nossas ações.
Mais do que ninguém, este missionário conseguiu compreender a alma do jovem, vivenciando as grandes mudanças de seu tempo. Na adolescência, no meio de tantas dúvidas e incertezas, é muito importante ouvir o conselho de alguém experiente em que se confia. Milhares de jovens, nessa idade, tiveram a sorte de ouvir a palavra carregada de sabedoria do padre Marcos, que possui, além disso, extraordinária capacidade de escuta.
Seus sermões são construídos com uma linguagem clara e didática, imagens fortes, compreendidas por todo mundo. É um raro dom poder manter a atenção de um público de fiéis tão diversificado. Padre Marcos consegue, porque seu discurso é alegre e instrutivo, tem gosto de nescau, de festa, de páscoa da ressurreição, de sino de natal, de aleluia, com peixe no prato e farinha na cuia.
Santo Agostinho, um dos maiores pensadores da Igreja, resumiu a essência de sua doutrina com uma frase mais ou menos assim:
– Ama a Deus e ao próximo como a ti mesmo e pinta os canecos.
Ou seja, vale tudo, desde que exista amor e solidariedade para com o outro. Acho que essa também foi uma das grandes lições que o padre Marcos deixou para os jovens que com ele conviveram. No momento em que a fé da gente fica no fio da navalha, é crucial conhecer alguém como o padre Marcos, uma cara muito do seu pai d’égua. (Ele merecia que devolvessem a sua bicicleta, roubada há mais de 40 anos).
P.S. – Fotos de Cláudio Nogueira
José Ribamar Bessa Freire
Fonte: Taqui pra ti
Leia mais em:
Gregório José Maria Bene e a Mudança da Freguesia de Alvellos – 1855
Projetos desenvolvidos em Coari resgatam a cultura popular
4 comentários em “Padre Marcos – Bessa Freire”
Devo so padre Marcos uma significativa parts de min ha formaçāo como cristāo e cidadāo.. Tenho orgulho de ter sido “acólito” e ajudei muitas de suas celebrações religiosas Saudades amigo Pe Marcos.
Assim é a vida de um religioso dedicado a orientar e aprender a conviver religiosamente com os seres humanos. Temos muitos padres bons por aí, mas como padre Marcos não. Um abraço fraterno desse admirador ex- seminarista em Belem-PA, 1964 – 1967.
Padre Marcos me ensinou que cada um tem seu Deus, o que verifiquei ao longo dos anos, ser uma grande verdade. Foi meu diretor no Seminário em Belém, e sempre me dei muito bem com ele, que acreditava muito em mim. Deus o tenha por perto, foi um grande ser humano. Evandro Moraes
Fui seminarista em Coari entre 1959 e 1962, conheci padre Marcos na época coordenador da Cruzada e da Juventude, dois movimentos de crianças e jovens da cidade. Parabén pelas palavras, Ribamar Bessa. Fomos colegas, não sei se lembras.