Archipo Góes
4 de novembro de 2023
O texto descreve a Praça São Sebastião em Coari como um local impregnado de memórias e eventos significativos para a comunidade local. Desde arraiais a marchas cívicas, procissões, gincanas e festas de carnaval, a praça foi o cenário de diversas atividades que marcaram a cultura coariense. Além disso, a presença de edifícios importantes como a Catedral, escolas e órgãos públicos ressaltam a relevância histórica do local. As lembranças nostálgicas do autor sobre a praça e seus arredores durante a década de 1980, incluindo detalhes culinários e encontros sociais, destacam a importância afetiva e cultural desse espaço na vida da comunidade.
Nesta tarde chuvosa de novembro, me encontro na minha loja em frente ao computador. A cidade está imersa em tranquilidade e silêncio, permitindo apreciar o sussurro do vento e o ritmo das gotas da tão ansiada chuva, um alívio em um ano marcado pelo calor intenso e pela fumaça das queimadas. Da minha mesa de trabalho, desfruto de uma vista privilegiada da nossa majestosa catedral no topo da colina, com os seus mais de 120 anos de história, velando por Coari. Neste instante, uma enxurrada de lembranças me inunda, sobretudo de minha adolescência, vivida nesse ambiente tão rico e expressivo da cultura coariense.
A Praça São Sebastião é um lugar impregnado de memórias e palco de uma infinidade de eventos. Ali, eram realizados os arraiais, marcados pela alegria e comunhão. As marchas cívicas, repletas de patriotismo e fervor, também tinham o seu lugar. As procissões, momentos de fé e devoção, percorriam suas ruas. As manifestações de protestos expressavam as vozes do povo coariense, enquanto as cerimônias de posse de prefeitos e vereadores simbolizavam novos começos.
A praça era a arena das gincanas, recheadas de risos e espírito competitivo, e abrigava as colônias de férias, onde as crianças se divertiam e criavam memórias para a vida toda. O futebol no gramado era a diversão extasiante, principalmente nos dias de chuvas. E durante o carnaval, a praça era o coração da festa, concentrando os blocos carnavalescos antes de desfilarem pela XV de Novembro. A Praça São Sebastião, portanto, não era apenas um lugar, mas sim, um ícone vivo na tapeçaria cultural de Coari.
Durante a década de 1980, a praça abrigava os principais edifícios da cidade. Entre eles estavam a Catedral de Sant’Ana e São Sebastião; a escola Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, carinhosamente chamada pelos moradores de “Colégio”; a Casa Paroquial, conhecida como a casa dos Padres; e a Cúria, a residência do Bispo. Além destes, outros marcos importantes eram a Câmara Municipal, a Rádio Rural e Educacional de Coari, a Telamazon, a Secretaria de Fazenda (SEFAZ) e a Escola Francisco Lopes Braga.
Embora existam diversos locais importantes em nossa cidade, gostaria inicialmente de direcionar minhas recordações aos pequenos pontos que marcaram profundamente a juventude dos anos 80. Começarei pela Praça do Remanso, um espaço modesto situado em frente à Escola Lopes Braga. Este local era um reduto que valorizava a culinária coariense e, por muitos anos, manteve viva uma tradição simples e acessível.
Naquele local, encontrávamos um grupo de vendedores que nos apresentavam as delícias tradicionais daquela época. Entre elas, as senhoras vendiam broa de polvilho, uma iguaria que derretia na boca. Havia também o delicioso e tradicional Tacacá, o saboroso bolo de milho, o apetitoso churrasco de frango e o mingau de munguzá. Não podemos esquecer das memoráveis pipocas de Seo Onofre, sempre servidas quentinhas e com um maravilhoso aroma de manteiga derretida. O seu carinho clássico de pipocas era inconfundível.
Ao lado da catedral de Santana e São Sebastião, anualmente, o senhor Pedrinho Fialho, instalava o seu carrossel para o deleite das crianças que vinham de todos os bairros. Geralmente, o carrossel era montado em janeiro durante o arraial de São Sebastião e em julho para o arraial de Santana. Era um carrossel onde nos sentávamos em cadeiras e segurávamos nas correntes. Quando o motor elétrico era acionado, ele começava a girar rapidamente, proporcionando muita emoção.
Na esquina da rua 2 de Agosto com a rua Marechal Deodoro, se situava o “Canto da Tranquilidade”, um bar bastante renomado, de propriedade do seo Manuel Costa. Este bar era caracterizado por um ambiente ao ar livre, adornado com mesas e bancos de madeira, onde as bebidas como cervejas e refrigerantes eram servidas em copo americano.
Era um estabelecimento frequentado assiduamente pelos habitantes de Coari, conhecidos por apreciarem o inesquecível e saboroso Guaraná Baré em garrafa. Seo Manuel era pai de Neuziney, minha professora de português, de Joel, meu colega de aula e entusiasta da capoeira, e de Maria Costa, nossa amiga e ex-colega de trabalho na Secretaria de Cultura.
Por vezes, recordo-me de um assíduo cliente, o saudoso comerciante e apresentador da Rádio Coari, Abdon Sahdo. É provável que a música “Boêmio Confesso” tenha sido criada no “Canto da Tranquilidade”. Essa música foi a grande vencedora do primeiro festival de canção coariense, promovido pela Prefeitura de Coari em 1983. A letra era a seguinte:
Boêmio Confesso
Abdon Sahdo
Eu amanheço
Depois de uma noite dormida num bar
Vejo a cidade se iluminar
É gente passando pra lá e pra cá
Alguém me olha.
Pergunta à razão, eu não sei explicar
Não se foi tudo produto de 10 ou 20 cervejas
Quem sabe até mais?
Só sei que é bom um pileque homérico
A gente encontrar velhos amigos em busca de paz
Bebendo alegria que a noite nos traz
Eu sou boêmio, confesso,
não nego a minha paixão.
Pela mesa de bar, pelas noites de lua.
E afogo a tristeza do meu coração.
Voz de Aprígio – Composição: Abdon Sahdo
Diante da Catedral de Coari, encontra-se até hoje, a rampa da igreja. Com o passar do tempo, as recordações dos locais onde nos reuníamos para conversar e tocar violão ressurgem em minha mente. Sentados na rampa, tínhamos uma vista ampla, generosa e bela da Praça São Sebastião. Muitos conversa aconteciam entre a turma da sala de aula, os colegas da equipe de handebol e nas rodas de violão, onde escutávamos nosso colega do curso do 4º adicional, Wainerzinho, entoar canções românticas nacionais da década de 80. Era um palco de confidências e sonhos compartilhados sob o céu estrelado.
Minhas lembranças mais nostálgicas da Praça São Sebastião não estão sempre relacionadas aos eventos que ocorriam nos grandes edifícios institucionais. No entanto, os arraiais na quadra municipal eram inesquecíveis. Era ali onde costumávamos ouvir o locutor leiloando a “belíssima e gorda galinha assada”. Nesses momentos, a praça era preenchida por barracas de “marreteiros” e vendedores ambulantes, e a população da zona rural chegava para participar das novenas e dos arraiais dos padroeiros de Coari.
No cruzamento da Rua XV de Novembro com a Travessa Mota, havia o “Canto do Tititi”. Esse local era o ponto de encontro predileto dos estudantes da escola Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Durante o tempo livre, eles se reuniam para se atualizar sobre as novidades do fim de semana. Perguntas como: “Qual danceteria estava melhor, Mandy’s ou Tijuca?” ou “Quem estava namorando quem?” eram frequentes. Apesar de ser um espaço pequeno, o lugar era muito concorrido. Essas são memórias preciosas e nostálgicas que compõem um mosaico de afeto e saudade daquela época.
Ao lado da Câmara Municipal de Coari, encontrava-se o lanche Cairu, propriedade do senhor Weber Barbosa, afetuosamente apelidado de “seo Bebé”. Era a lanchonete mais popular da cidade, famoso pelos seus salgados e doces preparados com grande cuidado e dedicação. Quem viveu naquela época, certamente, se recorda do seu generoso pastel assado, do salgado de queijo, da donalt (donut), dos croquetes, dos ovos cobertos, dos rissoles, do bolo xadrez, das empadas e das queijadinhas. Além disso, a abacatada e do suco de cupuaçu natural, retirado com uma concha de uma enorme panela gelada do freezer, eram inesquecíveis.
Enquanto caminhava pela praça hoje, cada passo era uma viagem pelo tempo, revivendo memórias e emoções. Os jardins ali presentes despertam a sensação de liberdade e leveza, transportando-nos para outra época. Ao fixar o olhar no horizonte, surge um sentimento que nos transporta de volta ao porto seguro da infância. Percebo que a vida é construída em detalhes de cada fragmento do nosso caminho. Ao contornar a catedral, cada porta evoca uma recordação, um refúgio secreto onde a imaginação desabrochava. Este era o local dos encontros com os amores da adolescência, nossas primeiras experiências com o amor. Em cada porta, um grande amor que ficou no passado distante.
Diante disso, é possível perceber que na praça São Sebastião, pequenos lugares trazem grandes ensinamentos e a vida se revela em cada esquina, em cada pedacinho do nosso mundo.
Leia mas em:
As Origens da Cultura e do Festival Folclórico Coariense
Fátima Acris voltando do Miss Brasil 1968
11 comentários em “A Praça São Sebastião”
Ler sobre a história da minha cidade, é encatador. Parabéns, pelos detalhes, fez imaginar onde seria cada local.
Muito bom isso pq resgata nossa cultura
Voltei a minha adolescência.
Voltei às origens. Um compilado sobre a minha infância, adolescência e juventude vivida na minha Cidade Coari.
Voltando ao passado. Resgatando memórias perdidas de uma época boa. Parabéns pelo belo texto.
Saí de Coari em 1980 e ler essa reportagem me leva a um passado de lembranças maravilhosas e inesquecíveis. Vendo Coari hoje, parece inacreditável que existiu tudo isso e muito mais e como era bom e saudável nossa juventude.
Ler o roteiro histórico delineado nessas palavras de memórias a praça de Santana e São Sebastião é até uma ação espiritual, porque além de tudo que acontecia pela praça e seus arredores, está o corpo secular da catedral de Coari. Missas, novenas, primeira comunhão, batizados, crismas, o momento da fé católica guardado dentro do templo enquanto a vida cultural, social e trivial se passava lá fora.
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