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A Feira

Feira

Texto de memórias de Manuella Dantas sobre suas lembranças de infâncias acerca da feira do produtor rural de Coari.

O barulho começava cedo. Às 4h30min da manhã, eu já podia ouvi-los embaixo da janela do meu quarto, no sobrado. Era assim todos os sábados, na década de 80, quando os feirantes vinham da zona Rural e começavam a arrumar suas coisas ao longo da rua em que eu morava. A feira se organizava desde a escola Bereano, na rua Rui Barbosa, e seguia por toda a Deolindo Dantas, até a frente da casa, onde hoje mora minha irmã Raí Letícia.

Feira

Os feirantes chegavam aos poucos com suas canoas e barcos abarrotados de itens e organizavam tudo do jeitinho deles. Para demarcar o espaço, alguns colocavam ripas no chão, enquanto outros estendiam pedaços de lona ou simplesmente espalhavam seus produtos acomodando-os em sacos, paneiros ou bacias de alumínio. E assim eles iam ocupando cada pedaço da rua com frutas, verduras, legumes, plantas, vida.

Eu acordava, abria o janelão do meu quarto e me debruçava para ver toda aquela movimentação. Aquele cenário  despertava um monte de sensações: enquanto minha visão se encantava com as cores e formas que se (des)organizavam naquela rua, meu olfato buscava (em vão) encontrar meus cheiros favoritos, tudo isso ao som de uma infinidade de vozes e rimas que como um coral entoavam em vários tons: 

Feira

“Maracujá, abiu, pupunha, taperebá tucumã, cupu, jatobá, limão, tangerina, ingá, ingá-de-macaco, laranja, cacau, melancia, araçá, banana-prata, nanica, pacovã, ananá, castanha, caju, piquiá; farinha branca, amarela, beiju, pé-de-moleque, goma, tapioca; tucupi, açaí, buriti, melaço de cana, bacaba; batata portuguesa, batata-doce, ariá, macaxeira; cebola, cebolinha, coentro, cheiro verde, jambu, pimenta-de-cheiro, murupi, mastruz; macaxeira, tomate, cebola, pimentão…”, tudo junto e misturado, como se fosse um refrão.

Depois do café, ia para a janela da rua da frente do sobrado. De lá podia ouvir o seu Dimas testando o som para começar o culto, olhar melhor o rio, os barcos e canoas que se arrumavam de um jeito que só quem conhece o Amazonas consegue imaginar. Descia para a padaria para acompanhar o movimento de perto e ouvir as histórias de meu avô. Àquela altura do dia ele já tinha muitas para contar.

Certa vez ele precisou ajudar uma senhora que teve um bebê no banheiro da padaria, em outro momento ajudou uma mulher que sofreu um naufrágio e que nadou algumas horas apenas com um facão na mão, até chegar em terra. Eu ficava ouvindo com atenção, enquanto o ajudava a embalar alguns pães com um papel de rolo e uma cordinha que ele costumava tirar dos sacos de trigo. Essas histórias de cumplicidade renderam aos meus avós muitos afilhados. Perdi as contas de quantas crianças eles apadrinharam.

Feira

Lá por volta das dez, era a hora que as noivas costumavam passar. Elas vinham de lá do meio dos barcos, equilibrando-se nas rampas estreitas com um vestido branco e um sorriso largo. Em uma das mãos, o buquê e o véu; na outra, levantava a beira do vestido para não molhar, nem sujar de areia. Às vezes subiam todos juntos: de um lado a família da noiva, do outro a família do noivo. Assim eles iam caminhando em direção ao cartório, desfilando entre paneiros e bacias, tendo um rio de gente como testemunha da sua felicidade. Mal eles sabiam que aquela felicidade também era minha.

Ao meio-dia já estava tudo calmo. Na bancada da padaria estavam muitas frutas e legumes que meus avós ganhavam ou que trocavam por outros produtos com os feirantes. No rio, uma procissão de barcos retornava para suas comunidades. Arrumávamos tudo, fechávamos as portas e subíamos para o sobrado. Era hora de todos voltarem para casa.

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7 comentários em “A Feira”

  1. Luiz Carlos Barbosa Bezerra

    Muito interessante, isso sim é Cultura mesmo dessa cidade maravilhosa chamada COARI, gostei…..

  2. Quantas lembranças em torno.do acontecimento da feira na rua Ruy Barbosa! Todas vem a minha memória, os aromas e sons produzidos pelo movimento do comércio de produtos regionais. Ainda mais tendo como local de observação uma das janelas seculares do sobrado da família Dantas. Por praticamente um século as ruas citadas como local da feira tiveram um importante papel no movimento rural e portuário de Coari. A chegada das noivas posso também imaginar o ritual de subir da beira ao cartório e passar em meio a essa aglomeração regional. Parabéns a Manuela Dantas por compor uma crônica tão preciosa e rica em detalhes de um cenário tão típico das outras coaris, que já vivenciamos.

  3. Pingback: A Praça São Sebastião - 2023 – Cultura Coariense

  4. Essas memórias são muito vivas pra mim. Às vezes parece um tempo que não passou. Fico feliz que meus textos venham parar por aqui, nesse blog que tem um importante papel no resgate da história da cidade. Que possamos juntos, deixar para as próximas gerações, um retrato de outros tempos da nossa Coari.

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