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O Concurso – Francisco Vasconcelos

Foi preciso sofrer muito para chegar àquela conclusão. Há anos, quando entrara para a Companhia, a cabeça cheia de sonhos, pensara haver encontrado o caminho definitivo da vida. “Você vencerá, Tiago”, dizia sempre. “Você vencerá!…”. Quem duvidaria? Lembrava-se, sempre, do primeiro dia de trabalho, da primeira carta que lhe deram para redigir. Fora um momento difícil, aquele. Rabiscara inúmeras folhas de papel e só conseguira escrever o início. Encalhara no verbo informar, cheio de dúvida quanto à regência. Parecia- lhe que todos o olhavam; que o olhava o chefe, impaciente, com ar de insatisfação. E jurava que o ouvia dizer: “essa carta é pra hoje, seu Tiago. Vamos!…”.

Sofreu muito naquele primeiro dia de trabalho. Depois, tudo correu bem. O chefe não escondia sua preferência. “É um bom menino”, ouvira-o comentar. “Esse vai longe!…”.

Aqueles elogios, recebidos inesperadamente, faziam-no sorrir e crescer em pretensões. Via-se, dentro de três ou quatro anos, chefiando uma carteira, com telefone à mesa e uma campainha para chamar o contínuo. Por isso rejeitara, até mesmo, função interina numa repartição pública, embora, nela, fosse ganhar um pouquinho mais.

Passados onze anos, Tiago concluía que tudo lhe saíra ao contrário. Sua situação, na verdade, em nada mudara. A única diferença estava em que já não alimentava nenhuma esperança. E, em lugar dos pensamentos de outrora, repetia baixinho, num esforço de autossugestão: “Você precisa dar o fora, Tiago! Coragem, homem!…”. Ah! Como fora estúpido. Quanto tempo perdido? Onze anos, e a mesma coisa. Mas o concurso ele o faria. E no dia em que fosse aprovado, cara a cara com o gerente, diria: seu Walfredo, sua Companhia me roubou por onze anos. Mas de hoje em diante a coisa é outra. E não adianta me olhar assim, seu Walfredo. Passei no concurso. Passei, seu Walfredo… Ah!… Quanta satisfação vai sentir quando puder dizer isso. É que jamais poderia perdoar- lhe a injustiça. Quantas vezes não o preterira em proveito de outros? E como fora tolo! “É um bom menino!… Esse vai longe…”.

O grande conforto de Tiago estava em aguardar mais uns dias. Não sabia por que, mas tinha certeza de que tudo lhe seria diferente. Tentadoras propostas lhe seriam feitas. “Seu Tiago, isso é loucura! Nós lhe damos um aumento, seu Tiago!…”. E por certo lhe falariam dos onze anos que iria perder, como coisa que já não os houvesse perdido há muito tempo. Mas Tiago é pai, seu sacana, Tiago tem fibra. Não haverá acordo nem aumento que o prenda um dia a mais na Companhia ladrona. Nenhum. Então só aí é que irão descobrir-lhe as qualidades de bom empregado? Depois de explorá-lo, de roubar-lhe as esperanças e de humilhá-lo? Não! Bastava. Mandaria às favas a Companhia e os onze anos. Começaria a vida outra vez, com bom ordenado e promoções certas.

Não podia entender como tardara tanto a tomar aquela decisão. Fora, não tinha dúvida, um burro, um idiota. Mas nunca seria tarde, pensava. E mesmo que fosse, sempre haveria tempo para uma atitude. Ficar onde estava é que não podia. A menos que corresse o risco de passar fome, ele e os filhos. Como suportara onze anos naquela vida de aperreio?

Cada fim de mês era um inferno. Os cem cruzeiros que, não sabia quantas vezes, havia emprestado, iam, de um a um, saindo da carteira, deixando-o apreensivo, ante maiores e inadiáveis compromissos. Já quase sofrera ação de despejo, e o taberneiro, por mais de uma vez, o ameaçara de cortar o crédito. Para vestir a mulher e os filhos, abrira crediário. A primeira prestação, pagou com sacrifício. A segunda e a terceira, ficaram vencidas: adoecera-lhe um filho. Mas o que mais lhe doía era chegar em casa e ouvir: “Papai, o meu sapato!…”. “O meu, papai!…”. E sempre a mesma resposta, tapeando os filhos: “Amanhã… Amanhã papai compra!…”.

Tornara-se, por tudo isso, um tipo revoltado. E admitira, por força da miséria em que vivia, a existência de uma minoria da qual ele, decididamente, não fazia parte. Não tinha mais nenhuma dúvida em afirmar como válidos alguns preceitos da chamada “esquerda”, tão temida. Certa vez, ao discutir o assunto com alguns colegas, um deles, muito ligado aos propósitos da Companhia, sem a menor consideração, lhe dissera, agressivamente: Isso é recalque, Tiago!… Você é recalcado… Ora recalque!… E recalcado ele sabia muito bem quem era…

Fizera já trinta e seis anos. De casado, mais de oito. Filhos, nada menos do que seis. E foram estes que um dia lhe notaram os primeiros cabelos brancos:

– Papai, só velho tem cabelo branco?

– Por quê?

– Os seus, papai… Tem é muito!…

– Deixa aí, deixa…

Quando ia dormindo, um dos meninos voltou à carga:

–    Pai!

–    Hum?

– O senhor é homem ou é velho?

Tiago sorriu com a curiosidade infantil do filho. Menino tem cada pergunta!… Mas essa diferença, lembrava-se, alguns grandes, também, faziam. Certo dia, aquele mesmo colega que tentara humilhá-lo, não chegara a dizer-lhe você é velho, Tiago, você não é homem? Ah! A resposta ele daria em breve. O concurso viria, e todos iriam ver quem, na verdade, era ele. E antes de cair no sono respondeu ao filho:

– Os velhos também são homens, meu filho.

Aquele domingo terminara cacete e melancólico. Passara as horas a pensar na vida, no tempo perdido, no concurso. Nenhuma diversão. Nenhuma pessoa com quem conversar, senão a mulher que, a todo instante, reclamava alguma coisa, e os filhos, confundindo-lhe a cabeça com barulheira infernal. Uma lembrança o seguira por todo o dia: o concurso. Alguém lhe dissera que, no dia seguinte, os jornais publicariam o edital, marcando a data das provas e estipulando as bases do concurso. E quanto esperara por aquele momento. Talvez, sua última oportunidade. Um aumento, não sabia de quanto, mas um aumento. Por certo, o dobro do que ganhava. Que mais poderia desejar? Estava ainda com trinta e seis anos e, dentro em pouco, teria a vida definida, ganhando bem, sem problemas.

Perseguido por tão agradáveis pensamentos, só conseguiu dormir pela madrugada. Mas, embora dormindo, o concurso estava presente. Sonhava. Como lhe acontecia tamanho infortúnio? Chegara atrasado para as provas. E sentia incontida vontade de chorar. Tentava justificar o atraso, como fazia na Companhia quando chegava fora da hora, mas de nada adiantavam os argumentos. E por incrível que lhe parecesse, era o próprio Walfredo, o gerente, quem lhe dizia com enorme sorriso de sarcasmo e satisfação: “Perdeu a vez, seu Tiago!… Agora é tarde…”. Acordou soluçando. Por instantes ficou em dúvida, esfregando os olhos. Chegar atrasado? Jamais! Uma hora antes da prevista no edital, estaria lá. Quanto à indigesta figura de Walfredo no sonho, talvez lhe servisse: ia jogar no porco. No porco? Sim, no porco…

Tomou café e saiu. Ao saltar do ônibus, a primeira coisa que fez foi comprar um jornal. Tentou folheá-lo, mas viu que não dava tempo. Uma curiosidade nunca antes sentida dele se apossara, deixando-o eufórico, ansioso. Teriam publicado o edital? Mal chegou ao trabalho, assinou o ponto e procurou um lugar reservado onde, mais à vontade, pudesse ler o jornal. Nenhuma notícia daquelas que as manchetes traziam lhe interessava. Apenas uma, publicada na segunda página, prendeu-lhe um pouco a atenção: OU AUMENTO OU GREVE. Mas quem iria fazer greve na Companhia? Ele. Ele, Tiago, faria. Não! Não iria precisar de greve para conseguir aumento de salários. O concurso viria… o concurso.

E as mãos de Tiago, trêmulas, viram folha por folha do jornal. Desespera-se. Seus olhos devoram, avidamente, página por página. Lembra-se de que no dia anterior jogara seu time. Quem teria vencido? DERROTADO MAIS UMA VEZ O… Era muito azar. Só podia ser azar. E quase desiludido, ao virar a última página, encontra, finalmente, o que tanto procurava: Dasp. Lê com sofreguidão:

EDITAL DE CONCURSO.

Estarão abertas, a partir de 10 do corrente, as inscrições… Poderão inscrever-se candidatos de ambos os sexos… O limite mínimo de idade é de 18 anos e o máximo,… de… 35…

archipo

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