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O Enterro do Xiri – Erasmo Linhares

coari

Quando nasceu, deram-lhe o nome de José, mas todos o chamavam de Xiri, um apelido que pegou para toda a vida e ninguém mais se lembrava porque o chamavam assim.

Nascera naquele bairro e dali não se mudara uma vez sequer e por isso conhecia todos os palmos do terreno, todas as ruas e becos e todas as pessoas que nele moravam.

Era baixo e franzino e quem não o conhecesse jamais desconfiaria que, por trás daquela aparência magra, estava um senhor jogador de futebol. Jogava muito bem e rivalizava mesmo com os grandes craques da cidade, aqueles que jogavam nos grandes clubes e disputavam o campeonato oficial. Era ágil nos dribles, rápido conduzindo a bola e quando ela era alçada à altura do seu surpreendente impulso, sua cabeçada, dentro da área, era fatal.

Por causa disso era disputadíssimo pelos times que se organizavam no bairro para as peladas domingueiras. A paixão pelo futebol daquela gente era irresistível. Todos os domingos havia um torneio no campo localizado ao lado da serraria e o prêmio ao vencedor era sempre duas grades de cerveja, ofertadas pela cervejaria existente no bairro.

Em tempo certo Xiri casou-se com uma moça do mesmo bairro. Ela detestava o apelido, mas o que fazer… Quando as pessoas mais distantes viam o casal, costumavam dizer — É um estrago. Dona Omarina era bonita demais para o franzino Xiri. Mas viviam na maior felicidade e tiveram dois filhos.

Apesar da paixão pelo futebol, os times não eram fixos. Eram formados durante a semana pelos líderes das ruas e becos, depois de muitas conversas e conchavos. Em razão disso, era comum alguém jogar por um time em determinado domingo e no outro envergar a camisa do adversário. Formava o melhor time aquele que fosse mais insinuante e possuísse alguma coisa para oferecer.

As convocações começavam na terça-feira, porque na segunda, todos ainda estavam de ressaca das estripulias do domingo.

Em certa semana, Daniel, um líder de beco, tratava de formar sua equipe discutindo com a turma dos mais chegados. Queriam o Xiri na ponta-esquerda – ele chutava bem com as duas pernas -, mas sabiam que naquele instante o craque estava trabalhando. Era necessário, contudo, que o garantissem, antes que outros o sondassem. Chamaram o Tontinho – Vai agora à casa de Dona Omarina e diz a ela que, neste domingo, o Xiri é nosso. O garoto saiu correndo e quando, chegou afobado, bateu na porta. Dona Omarina lavava louça na cozinha e, distraída, foi atender com uma caçarola na mão. E perguntou – O que é? Ainda arfante da corrida, o menino disse – Dona Omarina, seo Daniel mandou dizer que neste domingo seo Xiri é nosso.

Dona Omarina espantou-se e depois a raiva subiu-lhe à cabeça. Não disse nenhuma palavra, mas vibrou a caçarola, com toda força, na cabeça do Tontinho. O garoto saiu em disparada, zonzo, e nem mais voltou a falar com o Daniel.

Um dia resolveram formar um time de verdade. Escolheram os melhores jogadores do bairro e o inscreveram na Liga para disputar o campeonato estadual. O time não fez bonito, mas o Xiri na ponta esquerda deu muito trabalho às zagas adversárias.

Já carregado na idade, Xiri deixou de jogar futebol. Continuava a trabalhar na serraria, onde passara quase toda sua vida, gozando das graças dos patrões. Mas deu de beber. Saía do trabalho às cinco horas da tarde e ia para o bar do Dodó. Sentava e ia pedindo as doses. Nunca pedia uma garrafa cheia, mas de dose em dose bebia mais do que o conteúdo de uma delas. O cigarro Astória só saía dos lábios para entornar a bebida. Não que gostasse muito dele, pois era muito forte, mas também era o mais barato. Mais forte só o Margarida ou o Princesa, fabricados na cidade mesmo, mas eram poucos os que conseguiam fumá-los.

Chegava em casa sempre depois das nove, invariavelmente embriagado, para desgosto de Dona Omarina, que não parava de fazer novenas para o marido deixar o vício. Tudo em vão. Embora fosse trabalhar todos os dias, não era mais o mesmo e só não foi despedido, devido aos muitos anos que tinha de casa.

Num sábado, pela manhã, a notícia se espalhou: Xiri morreu. Os amigos, todos do bairro, acorreram a sua casa. Cotizaram-se, compraram um caixão razoável e trataram dos papéis. Marcaram o enterro para às cinco horas. Naquele tempo não havia funerárias que hoje cuidam de tudo e muito menos carro fúnebre. Os enterros eram feitos a pé. As pessoas carregavam o caixão segurando pelas alças. Levavam um banquinho para colocar o caixão durante o trajeto, quando todos já estavam esbaforidos.

O cortejo saiu às quatro horas. Dona Omarina, abalada, não foi, nem deixou que os filhos fossem. Eram poucos os que acompanharam o caixão. A grande caminhada desestimulara a maioria, conquanto todos fossem seus amigos.

Quando se deu a segunda parada, o caixão em cima do banquinho, estavam bem defronte de um bar. Alguém deu a ideia – Vamos tomar uma para ver se a gente chega ao fim. Foram todos para o bar tomar doses de cachaça. A caminhada se reiniciou, com todos, se revezando nas alças. A caminhada era longa e, por isso, a cada bar por onde passavam, repetia-se o cerimonial. O caixão em cima do banquinho, à beira da calçada, e os acompanhantes tomando suas doses.

Quando chegaram bem perto do cemitério, onde havia um bar, um deles lembrou – Gente, o Xiri era um cú-de-cana, porque a gente não dá o último gole pra ele? O pessoal se entreolhou, mas acabou concordando, rindo muito da ideia.

Compraram uma garrafa cheia, abriram a boca do defunto e derramaram todo o líquido – Pronto, agora ele vai feliz.

Ao chegarem à porta do cemitério já passava das seis e o administrador não queria enterrar o defunto. Foi preciso muita conversa e algumas ameaças – Olha aqui, meu chapa, este aqui é o doutor Xiri, o senhor não pode fazer uma desfeita dessas.

Até que o caixão desceu à terra.

Voltaram a pé, fazendo as mesmas paradas nos bares, agora sem o estorvo do caixão. Chegaram ao bairro depois das dez horas da noite, todos devidamente embriagados.

Xiri descansava em paz.

Quadro denominado “O Enterro” de Cândido Portinari

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