O tocador de charamela e o froc-froc da mídia

Coari

José Ribamar Bessa Freire

“Não senhor, não sou homem de potoca. Nesta minha velha e cansada vida, se menti alguma vez, foi só pra pescar mulher”.
(Erasmo Linhares – 1934-1999).

Corria o ano de 1979. Peralá, Babá! Era setenta e nove ou oitenta? Já faz tanto tempo! Só sei que foi no ano em que o radialista Erasmo Linhares publicou uma das mais belas páginas da literatura amazonense: o conto O Tocador de Charamela. Éramos professores no Curso de Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Numa sala do velho ICHL, discutíamos, em reunião formal, o planejamento do próximo ano e me delegaram tarefa espinhosa similar a que a presidente Dilma deu recentemente ao Joaquim Levy Mão-de-Tesoura. O chefe do Departamento, Aguinelo Balbi, colocou a mão no meu ombro e disse num tom solene e paternal:

– Você, que morou em Paris, vai guilhotinar o desnecessário.

Entregou-me uma pasta com papéis. Depois, com gesto de serrote que degola pescoço, passou a mão em vai-e-vem pelo gogó, acrescentando:

– Corta o supérfluo. Ordens do diretor. O país vive crise econômica.

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Papel higiênico

Era um trabalho de bosta que te afastava da produção acadêmica. Abri a pasta. Lá estavam as listas com o material reivindicado pelos meus colegas. Minha tarefa era decepar o que fosse dispensável. Este poder mágico – quem diria! – apoiava sua indiscutível legitimidade em alguns anos de vagabundagem no Quartier Latin. Morar em Paris equivalia a uma residência médica, conferindo-me a competência de um cirurgião para operar e cortar.

Cortar papel higiênico é fácil. Qualquer um corta diariamente. Quero ver é cortar equipamentos da Rádio Universitária, com potência diurna de 1.000 watts e noturna de 0,25 watts, projeto de autoria de Erasmo Linhares, um dos esteios da Rádio Rio-Mar.

(Ih, falando em rádio, me lembrei do ano. Com certeza era 1980. Não foi em julho de 1980 que o Papa visitou Manaus? Foi. Lembro muito bem, porque enquanto rolava nossa reunião, o radinho de pilha da Labibe, a secretária, não parava de tocar na sala ao lado “Abenção, João de Deus!”).

Voltando à vaca fria: onde é mesmo que nós estávamos? Ah, na lista do Erasmo. Os nomes que continha eram todos estranhos para mim: sapata hot shoe, redutor de voltagem, receptor remix, mesa de som beringer, microfone shure. Entendo tanto de rádio quanto o Ronaldo Tiradentes de química inorgânica (ou orgânica, tanto faz, ele não entende mesmo de porra nenhuma). Tal ignorância me impedia de saber o que era supérfluo na lista.

Como decidir se um transmissor modelo BTA e uma banca de mixagem – dois bichos que você nunca viu – são essenciais para montar um laboratório de rádio? Foi aí que encontrei no meio de nomes estrangeiros a única coisa que me soava familiar e ainda por cima era indiscutivelmente supérfluo: alguns metros quadrados de tapete.

Tapete é luxo?

– Te peguei, Erasmo! A pátria educadora em crise exigindo sacrifícios de todos, os metalúrgicos do ABC paulista em greve e você me vem exigir que a Universidade compre tapetes para amaciar teus pés? Isso é supérfluo. Cortado! Ordens do Diretor!

Erasmo, uma flor de pessoa, não humilhou minha ignorância, talvez por isso fosse tão querido por todos nós. Levou-me a local reservado e me explicou com paciência:

– Tapete é essencial. Sem ele, qualquer deslocamento das pessoas no estúdio prejudica a gravação, compromete a qualidade do som.

Aí, para comprovar o que dizia, esfregou o sapato no chão de cimento, provocando atrito e ruídos.

Foi o ovo de Colombo, a maçã de Newton caiu na minha cabeça. O tapete ficou mesmo na lista. Erasmo e eu levamos o relatório final para o Aguinelo Balbi que manja prá cacete de leis, mas – data venia – não entende chongas de rádio. Se na lista constasse uma charamela, Aguinelo não desconfiaria. Os seus olhos percorreram o relatório e – ops! – brilharem de emoção diante de algo conhecido:

– Pelo amor de Deus! Isso é um escândalo. Tapete é luxo. Corta!

Erasmo, generoso, ficou calado e deixou que eu faturasse. Com o maior despudor, como se fosse o descobridor da pólvora, fiz uma cara de sabichão que morou em Paris e pontifiquei:

– Não é luxo não. É necessidade. O tapete evita ruídos, entropia. Olha só.

Esfreguei minha sandália no chão com efeito espetacularmente convincente.

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Capa do Livro de Erasmo Linhares

A Romaria

Ao som de uma imaginária charamela, Erasmo, Aguinelo e eu, com o relatório em mãos, iniciamos uma romaria ao gabinete do diretor do ICHL, Felismino Soares Filho, especialista respeitado em administração, mas que não entendia bulhufas de radiodifusão. Ele colocou os óculos e examinou a lista. Se lá estivesse escrito que era preciso comprar quatro megahertz de válvulas radioelétricas, ele toparia. Parou, igualmente, no único item compreensível.

– Isso não! Corta. Imagina! Nem aqui, na sala da direção, tem tapete.

Confesso que ainda tentei exibir o novo conhecimento, mas Aguinelo pulou na frente. Com sorriso de especialista em teoria da comunicação, disparou:

– Diretor, o tapete é essencial. Es-sen-ci-al!

Esfregou seu sapato no chão: froc, froc, produzindo ruídos. – Entropia – dizia. Explicou tim-tim por tim-tim. Deu aula de feed-back. Os olhos de Felismino se iluminaram:

– Puxa! Não havia pensado. Então o tapete fica.

No dia seguinte fomos todos, nós e o tapete voador, ao gabinete do sub-reitor de graduação, na época, o engenheiro Raimundinho Lopes. Ele mandou servir cafezinho. Demorou um pouco para ver a lista, apesar de o relatório estar aberto justamente na página do tapete. A reação foi sóbria, mas inflexível:

– Tapete é luxo. Corta.A Pátria exige sacrifícios de todos os seus filhos.

Hierarquicamente, coube a Felismino esfregar o seu sapato no chão e fazer o froc-froc, dizendo:

– Nós, que entendemos de teoria da comunicação etc e tal, sabemos que neste caso tapete não é luxo.

Lopes ficou encantado:

– Sim senhor, vivendo e aprendendo.

Dali saímos em procissão, fomos todos para a sala do reitor Octávio (com “c”) Mourão, toda atapetada, parecia até a sala do trono do Palácio do rei da Pérsia. Ele recebeu o relatório, mas disse que o examinaria depois. Lopes insistiu para que desse pelo menos olhada perfunctória. Orientou a leitura, chamando a atenção do reitor para o projeto da Rádio Universitária. Mourão, quando bateu o olho, ficou lívido, virou o Mourão branco:

– O quêêê! As ordens do ministro são claras. Redução drástica de gastos. Tapete é luxo.

É claro que hierarquicamente a vez de se exibir era do Raimundinho Lopes. E ele se exibiu mesmo com tudo a que tinha direito, froc-froc, entropia e teoria da comunicação. Até aí, eu vi. O que não vi, mas posso imaginar, é o reitor chegando ao Ministério da Educação, acompanhando do seu chefe de gabinete, Ivo Choskotta, assim apelidado por causa do Tomaso Buschetta. Como o MEC é todo atapetado, Choskotta leva areia numa caixinha. Na hora do froc-froc, ele atira um punhado de areia sob o cromo alemão do reitor. Será que Eduardo Portela, ministro da Educação, fez o froc-froc para o general Figueiredo. E o Figueiredo, diante do FMI?

Sei não, mas suspeito que o primeiro ministro grego Tsipras teria êxito se soprasse uma charamela e explicasse para dona Angela Merkel que – froc, froc – tapete não é luxo na zona do euro.

P.S. – Recuperei essa crônica de 1997, porque de repente senti uma puta saudade do Erasmo Linhares (1934-1999), cujos contos produzem em mim a mesma sensação de prazer quando leio Llano en llamas ou Pedro Páramo de Juan Rulfo.

P.S. 2 – A charamela é um instrumento de sopro com palhetas, pai do oboé e avô do fagote. O livro de contos do Erasmo, com esse titulo – o Tocador de Charamela – teve uma primeira edição em 1979, que é a que tenho, muito furreca. Depois a EDUA – Editora da Universidade do Amazonas – fez uma edição mais cuidadosa em 1995. Cada vez que releio, penso que se o Erasmo fosse paulista ou carioca poderia ser curtido por mais brasileiros.

P.S. 3 – Erasmo Linhares é uma grande expressão da literatura coariense. (grifo meu)



Fonte: Site do Professor José Ribamar Bessa Freire – Taqui Pra ti
http://www.taquiprati.com.br/cronica/366-o-tocador-de-charamela-e-o-frocfroc-da-midia

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Bessa Freire

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