O excerto do livro “Vale a pena contar”, de Maria Julia de Mello Rodrigues, narra suas experiências marcantes vividas em Coari, interior do Amazonas, no ano de 1952. O texto aborda sua atuação na área da educação e na Igreja Batista, a superação de conflitos religiosos com padres locais, sua primeira gravidez e episódios memoráveis da vida amazônica, como o ataque de uma onça e o caso de uma jovem ferida por um candiru. Com linguagem intimista e histórica, o relato oferece uma rica visão da vida no interior do Brasil, destacando valores de fé, coragem, solidariedade e pioneirismo educacional na região amazônica.
No início de 1952 fomos para Coari, atendendo a um apelo do pastor Antunes. Em 1949, tínhamos ajudado aquele educador idealista a fundar naquele município, situado no Rio Solimões, o primeiro Ginásio e Escola Normal no interior do Amazonas. Só havia esse tipo de educandário em Manaus, capital do Estado.
A primeira diretora foi a minha irmã, professora Maria Rita Mitouso de Melo, que também possuía o curso superior feito no Recife, na Escola de Trabalhadoras Cristãs. Ela adoecera e precisou viajar para Fortaleza, para tratamento de saúde. O pastor não encontrou quem a substituísse.
Então nos fez o desafio de largarmos tudo na cidade e irmos salvar aqueles educandários e ajudar a Igreja Batista, que estava enfrentando grande crise. Foi-nos muito difícil tomar a decisão de ir. Oramos e sentimos que Deus aprovava a nossa ida.
Trancamos a casa em Manaus, pedi licença ao Banco Ultramarino e, num hidroavião da Panair do Brasil, viajamos para Coari, cidade que não conhecíamos.
Logo que chegamos fomos morar na residência do casal Mário e Lizete Silva. Éramos tratados maravilhosamente bem. Somos muito gratos a esses amigos. Depois alugamos um aposento, numa hospedaria, que chamavam de hotel, o único existente na cidade. Ficava bem na beira do rio. O lago era lindo! Natan fez os principais móveis que precisávamos. Só havíamos levado a cama.
Foi morar conosco, para ajudar nas lides domésticas, uma moça chamada Jovita Sevalho. Trabalhávamos fora nos três expedientes. Jovita nos acompanhou depois para Manaus. Contamos com ela durante quase oito anos. Ajudou a criar as nossas duas primeiras filhas – Nália Maria e Liana Maria. Minha irmã Maria Rita se restabeleceu, voltou para Coari e foi morar conosco. Reassumiu a direção dos colégios. Dali em diante ficamos lecionando várias matérias. Quando Ritinha regressou para Manaus, assumimos, novamente, a direção dos estabelecimentos.
Passamos em Coari todo o ano de 1952 e tivemos o privilégio de formar a 1ª turma de professores rurais daquele Município. O ideal do pastor Antunes era preparar educadores que pudessem servir no interior, pois era muito difícil (como até hoje), que os formados em Manaus se dispusessem a trabalhar fora da capital.
No início enfrentamos uma situação delicada em relação à área religiosa. Os padres redentoristas não queriam aproximação com evangélicos. Comportavam-se como inimigos. A hostilidade chegou a tal ponto que em certa ocasião mandamos um convite para uma festa no colégio e o presidente da Missão o rasgou na presença do Inspetor Escolar, que foi o portador da correspondência.
Pedimos a Deus sabedoria para quebrar esse desentendimento. Aproveitamos o aniversário da irmã Celma, então diretora da Maternidade que pertencia à Missão, e fizemos uma serenata em frente à sua residência. Eu tocava o acordeom e alguns dos nossos alunos cantavam os parabéns e outras saudações que lhe ensinei. Ela ficou surpresa e muito emocionada, pois não esperava tal manifestação de carinho de nossa parte.

Doutra feita, fomos à Igreja Católica, a Catedral da cidade. Depois, assistimos por ocasião do casamento de um de nossos alunos. Depois, assistimos a uma Missa, celebrada em sufrágio da alma de um amigo falecido. Isso os espantou. Mas a partir daí foram falando conosco, sem animosidade.
Um dos padres, que gostava de esporte, foi se chegando devagarinho, participando dos jogos de vôlei, futebol e tênis de mesa, interessando-se pelos torneios entre os nossos alunos.
Finalmente, sugerimos ensinar português para o referido Padre, que, em troca, nos ensinaria inglês. Ele concordou. E assim, quebramos a animosidade que havia e nos tornamos companheiros de ideais e de bem servir à comunidade coariense.
Trabalhamos com afinco na Igreja. Aumentamos o Templo e o preparamos para receber a Convenção Batista do Amazonas e Acre, que naquele ano de 1952 foi realizada ali.
Minha Primeira Gravidez

Foi justamente em Coari que recebemos uma grande bênção. Eu já estava casada há mais de dois anos, e ainda não engravidara. Tinha muita vontade de ser mãe.
Em agosto de 1952, Natan, que dirigia a parte esportiva do Ginásio e da Escola Normal, organizou um torneio entre os jovens dos municípios de Coari e de Codajás, nesta cidade.
Houve uma disputa acirrada. Coari ganhou, mas tivemos de sair de lá quase corridos. Quando descíamos o barranco, apressados para apanhar o barco, escorreguei e caí feio. Chovia fortemente. Cheguei a bordo passando mal, com vômitos e quase desfaleci.
Chegando em Coari, as náuseas e os vômitos continuaram. Viajei para Manaus para consultar o médico Dr. Wilson Calmon, que era o meu ginecologista. Ele me comunicou que eu estava grávida. Foi uma alegria! Telegrafei para o Natan anunciando que estava tudo azul. Ele já sabia que, com essa notícia, o nosso desejo estava se concretizando.
Nália – nossa primogênita – já estava gerada. Durante quatro meses enjoei muito. O único alimento que eu tolerava era frango. Ganhei dos amigos muitos frangos e passei os nove meses de gravidez e os quatro outros de resguardo comendo galinha, que aliás, passou a ser até hoje um dos meus pratos preferidos.
O Episódio da Onça

Um dia, à tarde, estávamos em casa, quando ouvimos gritos e pedidos de socorro, vindos de pessoas nas proximidades da praia. O nosso hotel, como já contei, ficava na beira do lago. Chegamos à janela e vimos um pescador na canoa gritando, pois dele se aproximava, cada vez mais, uma onça que vinha atravessando da outra margem, de mata espessa, mesmo já arpoada por ele.
Com os gritos dele e das pessoas na praia, uma lancha que estava no porto partiu a socorrê-lo, livrando-o de ser morto pelo feroz animal, abatido a tiros. Era uma onça-pintada, enorme estirada na praia.
Que tragédia teria sido se não fora a intervenção do pessoal da lancha. Quantas mortes teriam ocorrido quando ela chegasse na praia.
O Caso do Candiru

Candiru é um peixe pequeno, liso e fino que gosta de entrar em qualquer cavidade do corpo humano.
As mulheres em Coari costumavam lavar as roupas na beira do lago. Certa manhã, uma das mocinhas estava fazendo o seu trabalho, com metade do corpo dentro d’água, usando apenas um vestido. Um candiru atacou-a e penetrou-lhe a vagina. Ela gritou e tentou tirá-lo, mas o candiru, puxado, abre as barbatanas, cujas bordas parecem serra, e vem rasgando as carnes onde se alojou.
Ensanguentada, a moça foi acudida pelas senhoras que ali estavam e levada para o hospital, onde o enfermeiro, Sr. Enedino Monteiro conseguiu retirar o peixe. Experiente e competente, era considerado o médico da cidade. Contudo, a infeliz ficou deflorada. Perdeu a virgindade, naquele tempo condição indispensável para o casamento.
Ela ficou transtornada, por haver sido desvirginada por um candiru. Procuramos ajudá-la.
Falamos com o Juiz de Direito da cidade, conseguimos duas pessoas que deram fé do ocorrido e ele lhe concedeu um atestado, que poderia apresentar ao seu futuro noivo, quando o encontrasse.
Ela ficou feliz e agradecida. Hoje, está bem casada, vive no Rio de Janeiro, com todo o conforto.
No fim de dezembro, deixamos Coari. Foi um bom tempo que passamos ali. Uma rica experiência. Fizemos grandes amigos, que conservamos durante todos estes anos.
Maria Julia de Mello Rodrigues – Excerto do livro “Vale a Pena Contar” publicado no ano de 2.000.
Leia mais em:
Crônicas da Resistência: Projeto Literário da UFAM valoriza memória cultural em Coari