O texto narra a chegada, em 1947, de quatro Irmãs norte-americanas à Amazônia para missão evangelizadora e educativa. Em Coari, fundaram a primeira escola mista dirigida por religiosas no Brasil, inovando práticas educacionais e sociais. Com apoio dos Redentoristas, expandiram a educação na região, formando professor, enfrentando desafios culturais e geográficos e deixando um legado libertador na Amazônia.
Um estranho Natal em uma terra estranha
Irmã Marília Menezes
“A strange Christmas in a strange land!” Foi com essa frase que quatro Irmãs norte-americanas da Congregação das Irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo (ASC), sintetizaram, cheias de admiração, sua chegada, a 24 de dezembro de 1947, após 3 dias de viagem de Manaus a Coari, subindo o rio Solimões no “Industrial” – motor penosamente movido a lenha – vencendo a forte correnteza, cheio de gente, de bananas, animais e pirarucu. Tinham chegado de Wichita, importante cidade do estado central de Kansas, nos Estados Unidos, para serem missionárias na Amazônia. Nada de “Poinsettias” para decorações natalinas, ou o canto do “Jingle Bells”.
Ao anoitecer do dia 24 de dezembro, sob o céu tropical já faiscando de estrelas, as Irmãs foram saudadas pelo povo entusiasmado que gritava “Viva, Viva!”, e soltava foguetes na praia e nos barrancos do grande lago de Coari, formado pelo rio Solimões (ou Amazonas, como as Irmãs gostavam de dizer…), onde o motor atracava, no trapiche da pequena cidade de Coari. Seus nomes eram: Julitta Elsen, Marciana e Georgiana Heimermann (irmãs de sangue) e Joana Francisca Baalman, todas entre 40 e 50 anos.

Os ventos impetuosos que varriam a pradaria e a grandiosa plantação de trigo do centro de Kansas atingiram como símbolo do Espírito Santo, o coração apostólico dessas mulheres que, a pedido dos Padres Redentoristas — também norte-americanos — na Amazônia desde 1943, vieram evangelizar na nova terra. Já tinham deixado em Manaus, com o mesmo ideal, uma jovem que, na volta, as seguiria a Wichita, cheia de entusiasmo — Noeme Cinque — hoje a Venerável Irmã Serafina, vencendo o autoritarismo paterno, com o apoio libertário de Madre Julitta.
E, em março de 1948, em Coari, – como se lê no livro Jubileu de Amor (Marília Menezes, 1972) se iniciaria ali a primeira Escola. Surpresa de todos: a escola era mista! A primeira escola mista dirigida por religiosas, implantada no Brasil, causando estupefação em muita gente. As Irmãs inovaram também na Amazônia porque viram a necessidade que as famílias tinham em mandar os filhos dos dois sexos à mesma Escola. Perceberam que os meninos viviam entregues a trabalhos duros, na roça e na pesca, sem estudar — privilégio que só era concedido às meninas e notaram ainda que o fato de os pais enviarem os filhos à mesma escola, uniria mais as famílias — o que, de fato, aconteceu.
Foi escolhida a coordenadora para a Missão no Brasil – Irmã Julitta Elsen, por seus dons especiais de liderança, comprovados em outras tarefas nos Estados Unidos, sobretudo no ensino de escolas para crianças negras, vencendo a temível “Segregation”. O carisma de Maria de Mattias, (hoje Santa, canonizada a 18.5.2013), fundadora da Congregação na Itália, a 4.3.1834, era viver a caridade com que Jesus Cristo nos salvou, derramando o seu Sangue Preciosíssimo – Caridade vivida não só no amor a Jesus, mas no amor aos seus irmãos e irmãs. E que maior caridade do que ensinar as pessoas do interior da Amazônia, ter escolas, onde pudessem alfabetizar-se, ser catequizadas e preparar-se para a vida?

Um recorte de jornal dos Diários Associados de Manaus (maio de 1951), de um artigo de Álvaro Maia, governador do Amazonas, jornalista e escritor – demonstra a sua estupefação pela obra das Irmãs Adoradoras, em colaboração com os Padres Redentoristas.
Centenas de estudantes – primários, ginasianos e técnico-profissionais desfilaram em Coari, ao rufar dos tambores, bandeiras desfraldadas […] aclamando a inauguração das primeiras salas escolares em Coari. […] Trata-se de fatos vulgares no sul. No Amazonas, porém, através de apertos financeiros e atropelos das distâncias, esses fatos importam na Libertação do Homem, dos filhos de seringueiros e pequenos proprietários […] de milhares que estacionam às margens dos rios, vendo só em fantasia o ensino secundário-privilégio das capitais.
Irmã Julitta e demais Irmãs tinham sido convidadas pelo Bispo de Manaus, Dom João da Mata, para servir na Amazônia, porém vinham contar com o forte apoio dos Padres Redentoristas norte-americanos, que em 1942 haviam chegado a Manaus onde, pouco a pouco, haviam acabado com a péssima fama do bairro dos Tócos, transformando-o, a partir da devoção a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no bairro de Aparecida. Os Redentoristas tinham lançado em Belém essa devoção que empolga o povo. Em Manaus, como já havia a grande Paróquia do Perpétuo Socorro, deram à nova Paróquia por eles iniciada, o nome de N.S. Aparecida, e desde aí, também com o impulso da grande Escola onde as Irmãs Adoradoras ensinavam, o bairro de Aparecida nasceu, cresceu e apareceu, sendo hoje um dos mais desenvolvidos de Manaus.

Tudo isso custou muito ardor e zelo. Ir. Evelina Trindade, autora de um dos livros sobre a história das Irmãs Adoradoras na Amazônia, mostrou que as Irmãs brasileiras, ao se tornarem religiosas, aceitavam ao mesmo tempo, os rumos que as irmãs norte-americanas lhes mostravam, inspiradas, por sua vez, no ideal missionário da Igreja Católica. Irmã Julitta acreditou prontamente nas jovens que desejavam ser irmãs.
Muitas só tinham o curso primário. Muitas vinham de lugarejos, bem distantes das capitais. Irmã Julitta, porém, e as demais Irmãs pioneiras incentivavam as jovens a estudarem e a adquirir diplomas que as habilitassem ao ensino e a outras profissões. Irmã Julitta observava para que rumo ou profissão as jovens se orientavam e as incentivavam a se preparar para seguir melhor nessa direção. As irmãs brasileiras, por sua vez, viam o sacrifício que as norte-americanas faziam para aceitar o calor forte do Amazonas, as distâncias, as diferenças culturais tão grandes e com a força do amor de Cristo, umas e outras se esforçavam para levar a obra avante. (Evelina Trindade – “Sangue redentor nas trilhas da Esperança”).
Espaço Comunicação, Manaus, 1998. Ir. Evelina narra o desenvolvimento do sistema escolar na Amazônia, com o impulso das ASC junto à Seduc do Amazonas e Pará, preparando os cansativos processos, pedindo verbas para manter as escolas abertas na floresta, e mostrando a necessidade do reconhecimento dos ginásios. Exigiam também das autoridades a passagem destas escolas para os níveis de Normais e Pedagógicas – a fim de formar professores que ficassem no interior, para evitar o êxodo do interior para as capitais. E tudo era obtido com o maior esforço: viagens incansáveis de barco ou estrada e exaustiva espera nas salas das Secretarias de Educação. Devemos muito à visão educativa de Irmã Julitta em direção à educação evangélico-libertadora, que se ia espalhando cada vez mais na Amazônia. E as diferenças culturais iam sendo vencidas pelo amor a Jesus e à Sua causa, pelo amor ao nosso povo, e pela leitura dos sinais dos tempos que as Adoradoras norte-americanas e brasileiras foram fazendo.
Leia mais em:
Vale a Pena Contar – Coari na década de 1950
Crônicas da Resistência: Projeto Literário da UFAM valoriza memória cultural em Coari
Um estranho Natal em uma terra estranha









